sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

LIVROS PARA DEITAR FORA

Por Alice Vieira
Confesso: não sou capaz de deitar livros fora. 
De resto, eu pertenço a uma geração que tem muita dificuldade em deitar fora seja o que for. Por isso os objectos se vão acumulando e eu perguntando-me “o que é que faço a isto?”. Já pensei em fazer uma trouxa e ir vendê-los para a Feira da Ladra, mas os meus horários não me permitem ficar lá uma data de horas à espera de ver aparecer multidões interessadas em galhardetes, quadros com o brasão de juntas de freguesia de terras que nem sei onde ficam, frascos de perfume há muito vazios, amostras de tecidos, restos de lãs que nem para quadrados de mantas de patchwork já servem, etc.
Mesmo assim, de vez em quando tapo a vista com a mão, encho-me de coragem, e reúno sacos a abarrotar de lixarada, e venho colocá-los à noite ao lado dos contentores, não vá passar alguém que ainda lhes descubra serventia. 
Mas livros é que não.
Livros não sou mesmo capaz.
O pior é que, para lá de receber muitos livros (os meus amigos pertencem quase todos ao ramo…), eu ainda sou uma compradora compulsiva! Compro livros porque são de autores de que eu gosto, ou porque li uma crítica que me entusiasmou, ou até — assumo…— porque têm capas que são um espanto… Mas às vezes, prometem muito e dão pouco.
Então, periodicamente, encho caixotes de livros que vou enviando para bibliotecas ou escolas: livros que sei que nunca mais vou reler, livros que tenho em várias reedições, ou até livros de que eu, pessoalmente, até posso não gostar mas entendo que outros amem de paixão. 
Mas não é desses que estou a falar: refiro-me àqueles que não mereceriam (se eu fosse capaz…) outro destino a não ser o lixo. Tão maus, ou tão inúteis, ou tão fora de prazo que não me passa pela cabeça dá-los nem ao meu pior inimigo. 
Nos primeiros tempos da revolução, quando, de repente, descobrimos que podíamos viajar para os países até então proibidos da Europa de Leste, era fatal: regressávamos todos de lá vergados ao peso de toneladas de volumes encadernados com todas as intervenções dos camaradas nos diversos órgãos de soberania dos seus países. E — requinte dos requintes! — muitos deles na língua original. 
Lembro-me de ter tido de comprar um saco só para nele enfiar os discursos do camarada Jivkov, que me ofereceram na minha primeira ida à Bulgária.
Digam-me: o que é que eu lhes faço?
Contava o meu querido Alçada Baptista que uma das suas tias, ao ver-se confrontada com a pergunta de uma das criadas (“o que é que eu faço às listas velhas do telefone?”) terá respondido: “dê a um pobrezinho.”

Se calhar, vou seguir-lhe o exemplo. Tal como eu, ela também era de um tempo em que não se deitava nada fora.

sábado, 20 de janeiro de 2018

O Carro Azul

Por Alice Vieira
Às vezes penso no meu velho carro azul e sinto assim uma saudade estúpida como se de alguma pessoa amiga se tratasse e não de um simples automóvel, velho de muitos anos, completamente a cair de podre quando, há muito tempo, não tive outro remédio senão largá-lo numa oficina de sucata. O meu carro azul participou activamente nos momentos mais importantes da minha juventude: carregou toneladas de propaganda nas crises académicas, foi cúmplice de paixões proibidas, transportou este mundo e o outro, ouviu discursos de cinema e de literatura, lamentos de jornalistas em começo de carreira, quando a censura cortava o sangue que tentavam fazer escorrer pelas veias dos seus textos — ou muito simplesmente angústias banais do dia a dia lisboeta no princípio dos anos sessenta.
O carro azul, no fundo, pertencia um pouco a todos que lá entravam, uma sala comum onde tudo se discutia.
No entanto, embora pertencendo a todos, o carro azul pertencia sobretudo ao Luís Feist, meu colega de Faculdade.
O Luís era meu amigo.
Muito meu amigo.
Tão amigo que era o único — mas absolutamente o único--a quem eu passava o carro azul para as mãos.
Bastava que, no meio do anfiteatro da faculdade de Letras, ele se sentasse ao meu lado e murmurasse “precisava que tu...” — para logo eu enfiar a mão pela carteira e lhe entregar as chaves. Nunca me disse para onde ia, nunca lho perguntei. À hora marcada o carro azul estava sempre diante da porta da faculdade, com um ar completamente inocente, como se nunca dali tivesse saído.
Por isso o meu carro azul também teve uma outra vida que eu não conheci, e terá sido cúmplice de outros sonhos, ouvido outras conversas, assistido a outros encontros e desencontros.
Durante todos os anos que se seguiram, muito depois de ambos termos largado a faculdade, sempre que eu encontrava o Luís o carro saltava para o meio das nossas conversas, como se falássemos de um parente comum, que agora raramente dava notícias. Acho mesmo que foi o velho carro azul que nos manteve amigos estes anos todos, sem necessidade de nos vermos ou de nos falarmos muitas vezes, separados pelas correrias da vida e do trabalho.
Mas quando nos encontrávamos, era como se ele tivesse acabado de me entregar as chaves do carro, e se preparasse para as pedir de novo na manhã seguinte. Por isso quando li no jornal a notícia da morte do Luís, não acreditei. Deviam ter-se enganado de certeza.
A esta hora deve ele andar no meu velho carro azul por esse mundo a matar saudades.+++  Se nunca me disse para onde ia, também não ia dizer agora.
Do livro de crónicas Só Duas Coisas Que Entre Tantas Me Afligiram

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Falando de Felicidade

Por Alice Vieira 
LI JÁ NÃO SEI ONDE que a Assembleia Geral das Nações Unidas decretou que o dia 20 de Março vai ser o Dia Internacional da Felicidade. A ideia partiu, ao que parece, do minúsculo reino do Butão que, em vez do PIB (Produto Interno Bruto), adota como estatística oficial a “Felicidade Nacional Bruta”. Isto em português soa um bocado mal, espero que em butanês (ou na língua que lá se fala) soe bastante melhor…
Que bom, num mundo com tanta tragédia, haver um dia consagrado à Felicidade. (E, já agora, um pequeno parêntesis perfeitamente pessoal: deixem-me felicitar quem teve a ideia de o colocar no dia 20 de março, dia em que eu faço anos, o que me vai dar, a partir de agora, ainda muito mais razões para o festejar... Adiante). No dia 20 de Março, como todos sabemos, acaba o inverno. O que significa também que a Felicidade vai ficar ligada à primavera.
E, em tempos de crise e de depressão, como a que vivemos, nunca é demais lembrá-lo.
Mas, deixem-me confessar, que também não me agradava lá muito uma felicidade como a que se vive no Butão.
Há dias, zapando pelos canais do cabo, vi um documentário sobre o Butão. O Butão é um reino minúsculo, completamente isolado e fechado ao mundo (o que as montanhas onde está instalado propiciam), onde as pessoas vivem da agricultura como na Idade Média, dividindo o seu tempo entre o trabalho na terra e as idas aos templos. Preservam esse isolamento para que, segundo afirmam, nada possa alterar a tradição e os rituais. Estrangeiro é bicho muito raro por lá.
Tem, realmente, uma paisagem deslumbrante, mosteiros magníficos - e uma única estrada a atravessar o país. Se calhar, a felicidade também tem a ver com um trânsito sem complicações, e o completo desconhecimento do que é hora de ponta. Praticamente não se usa dinheiro, não há consumo.
No Butão é-se feliz porque - convenhamos - também não se pode ser outra coisa. E é isso que me apavora.
Que mérito poderá ter a minha luta pela felicidade se não tenho de combater a infelicidade?
Que mérito terá a minha realização pessoal e profissional se não tenho muita coisa que me realize?
Como posso discutir ideias se não há nada para discutir?
E de que falam as pessoas quando se juntam — se não há dívidas do Passos Coelho, prisão do Sócrates, a Troika, a família Salgado a amar-se apaixonadamente, o Belmiro a ir para a reforma, o Porto a ver se chega aos calcanhares do Benfica, a canção que mandámos para a Eurovisão e que nem para ir ao Festival da Bandalhoeira servia (com todo o meu respeito pela Bandalhoeira, claro) - essas coisas que fazem a felicidade das pessoas à mesa do café.
Como se pode ser herói se não há obstáculos para vencer?
Como poderíamos desejar tanto a primavera, se não houvesse inverno?
É claro que é muito bom que se encontre um dia no ano para se questionar a nossa Felicidade (ou a falta dela). Mas aflige-me muita a felicidade por decreto.
Por isso, em vez de pensar no Butão (apesar da nossa crise brava e das aparentes maravilhas deles, a meio do documentário eu já estava completamente deprimida…), e no sorriso permanente colado à boca dos habitantes, prefiro, apesar de tudo, voltar à terra, a esta nossa terrível, desesperante, complicada terra onde vivemos, a braços com esta terrível, desesperante, complicada crise que ninguém sabe onde nos leva – e pensar antes na minha amiga Helena Marujo que acredita, contra ventos, troikas , BES e marés, que todos fomos feitos para a Felicidade.
A Helena Marujo é uma cientista conceituada, não escreve livros de auto-ajuda – e, com o marido, Luis Miguel Neto, fundou há uns dois anos, o Instituto da Felicidade. E uma das suas ações mais importantes foi a elaboração de um estudo sobre a felicidade dos portugueses – ideia que lhe veio quando andava a estudar as causas da depressão entre crianças e adolescentes.
 Eu sei que há dois anos ainda não estávamos tão mal como agora, mas a verdade — como de resto ela salienta logo no início — é que nunca estivemos bem… Fomos sempre o povo da desgraça, do fado, o “país cabisbaixo”, como lhe chamou o poeta Alexandre O’Neil. E o que é preciso — seja em que tempo for – é procurarmos novas perspetivas de realização, novas maneiras de viver o dia a dia, novos interesses, novas disponibilidades, um novo olhar para quem vive ao nosso lado.
Carlos Drummond de Andrade escreveu uma vez que “há duas épocas na vida, - a infância e a velhice - em que a felicidade está numa caixa de bombons”…
Pois é preciso saber encontrar, também para outras idades, a respetiva caixa de bombons…
Custa, eu sei - mas antes isso que ser feliz por obrigação legal.