segunda-feira, 8 de outubro de 2012

MUSEU DE CERA


Por Alice Vieira
HÁ MUITO tempo que não subia aquela rua.
Durante muitos anos trabalhara ali perto, conhecia-lhe os cantos e recantos, tascas e cafés, mercearias onde tudo se vendia, alfarrabistas e casas de velas, tabacarias a transbordarem de revistas de croché e de culinária, num tempo em que o jet-set ainda não tinha sido descoberto.
Há muito lixo pelas esquinas e, nos degraus das portas, garrafas vazias de cerveja marcam o rasto das noites.
O velho elevador está em obras. Quem quiser trepar a colina terá de contar apenas com a força das pernas, e este continua a ser um bairro de gente velha.
Na manhã em que sobe a rua, tem quase a certeza de reconhecer toda a gente, de tal maneira todos se parecem com os que, há mais de trinta anos, se cruzavam com ela. Se lhes desse os bons dias, como se atravessasse uma rua da aldeia, todos lhe responderiam.
Há mais de trinta anos aquele lugar era quase uma aldeia.
Era ali que nasciam todos os jornais. Ou quase todos.
Era um lugar que cheirava a chumbo, porque as novas tecnologias nem sequer ainda se sonhavam, e —nunca conseguira perceber porquê — a açúcar queimado . 
Dos jornais saía sempre a mesma gente, que se encontrava à mesma hora, nas mesmas tascas e nos mesmos cafés.
Mesmo os que se arrastavam pelas esquinas ou se colavam horas infindas aos balcões dos cafés, e que não liam jornais, mesmo essas os conheciam a todos pelos nomes. Reduzidos à sua expressão mais simples: o Sôr Armando, o Sô Pedro, a D. Antónia, e por aí fora.
Continua a subir a rua, na pastelaria da esquerda há, como sempre, um velhote a comprar uma caixa pequenina de petits-fours que depois atira para dentro de um saco de plástico.
Porque aquele é o reino dos sacos de plástico.
As velhas saem de casa com sacos de plástico, entram nas lojas e nos cafés, e regressam ainda com mais sacos de plástico.
As velhas daquele lugar sempre tiveram muitos sacos de plástico e muitas doenças.
Ela entra no café onde há mais de trinta anos entrava todos os dias, pouca coisa mudou, consegue até sentar-se na que foi, durante todos esses anos, a sua mesa, há apenas umas estranhas pinturas verdes na parede, e outro sistema de pagamento: com a bica e a água entregam-lhe um cartão numerado, que apresentará na caixa registadora, à saída.
Às 10 da manhã, tem o número 065. Não sabe a que horas abre agora o café, por isso não tem ideia se a afluência foi muita ou pouca.
E as velhas também não mudaram.
Olha para elas e é capaz de jurar que se disser “Ó D. Isilda” ou “ó D.Felisbela”, ou “ó Menina Odete” – elas respondem. E que lhe hão de contar as mesmas histórias de filhos ingratos, e que lhe hão de perguntar se “a vidinha vai bem” e, com um sorrisinho cúmplice à beira dos lábios, avisá-la de quem avistam ao fundo da rua.
Ao balcão do café fazem, como sempre, o ponto da situação. O que lhes dói mais, o que lhes dói menos. Mas o pior de tudo são sempre, como sempre foram, os nervos.
Queixam-se dos médicos que não as entendem, dos remédios que não fazem nada, das noras que-para-ali-estão, e rematam sempre com a frase de fazer calar o pessoal :” eu é que me sinto.”
Levanta-se da mesa, vai pagar.
Enquanto lhe fazem o troco, ainda olha para cada uma das velhas, à espera de as ouvir dizer, olhando através da janela,” olhe que o Sô Mário já ali vem”.
Na rua, há uma loja em frente chamada “Flower Power”.
“Bem vinda ao século XXI”, disse baixinho.
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«ACTIVA» de Outubro 2012

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