sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A DOR DE CABEÇA


Por Alice Vieira
NEM SABIA há quanto tempo não entrava naquele jardim, perto da casa onde nascera. Ou antes: do sítio onde nascera, já que a casa há muito se transformara num stand de automóveis.
Uma vez passou por lá e ficou feita parva a olhar para a montra, pensando se o lugar da cama da mãe seria ali onde então se exibia um Aston Martin em todo o seu esplendor, ou, se calhar, lá mais para o fundo, onde se situava a secretária do vendedor .
Riu-se e o vendedor, lá de dentro, franziu os olhos, certamente nunca devia ter visto ninguém rir diante da montra, e ela desceu logo a rua, não fosse ele chegar à porta e perguntar “deseja alguma coisa?”, e ela “nasci onde o senhor está sentado.”
Mas nem mesmo nessa altura se lembra de ter entrado no jardim.
De resto o jardim estava então quase em ruínas. Os jornais traziam notícias e fotos,acabando todos a insultar a Câmara, que não fazia o que lhe competia.
Nunca mais se lembrara do assunto. O seu lugar de nascimento dizia-lhe muito pouco, até porque, segundo lhe contavam, tinha saído de lá aos quinze dias de idade.
Mas agora os netos andavam num curso de férias ali perto, e não havia outro sítio onde ela pudesse passar o tempo até serem horas de os ir buscar.
Alegrou-se com a recuperação do jardim (“ jardins abandonados só ficam bem nos poemas românticos e nas fotografias a preto e branco”, dizia muitas vezes) mas a dor de cabeça,aliada a um cansaço que ultimamente se agravava, quase a impedia de ver tudo como desejaria. O sol feria-lhe a vista, e teve de se sentar numa das cadeiras da pequena esplanada debaixo do enorme jacarandá, sem flor mas com sombra.
Em seu redor – e isso lembra-se de ser “imagem de marca” daquele bairro – muitos mendigos, por ali arrastando miséria e sujidade.
No meio do jardim, um parque infantil, onde as crianças gritavam e os adultos ainda gritavam mais do que elas, “Ruben, não caias! Ó Sónia,se atiras outra vez a bola lá para fora, a avó não ta vai buscar! Ai valha-me Deus, que são horas de ir fazer o almoço!”
Os gritos ainda lhe aumentam a enxaqueca (Odeia a palavra mas, quando está mesmo muito atacada  é só assim que se lhe refere, para tudo ser ainda pior..) Deixa cair a cabeça entre as mãos, fecha os olhos, deseja que aquelas duas horas passem depressa.
De repente ouve uma voz muito perto de si, sente um estranho bafo rente à sua cara:
“Precisa de alguma coisa?”
Abre os olhos e dá de caras com um dos mendigos.
“Quer que lhe vá buscar um copo de água ao quiosque?”
Nem consegue responder e já ele se arrasta até ao quiosque, onde há um jarro e copos no parapeito, e vê-o encher cuidadosamente o copo até acima.
E ela não quer ver a sujidade das mãos, e da barba e do cabelo, e não quer sentir o cheiro de há pouco, não quer mesmo mas não consegue, e ele traz o copo até à sua mesa, devagarinho para que não se entorne.
“Beba que lhe vai fazer bem”
E ela a olhar para as mãos dele, para sujidade das unhas, para os farrapos daquilo que um dia terá sido um casaco, e ele, estendendo-lhe o copo:
“Vá, beba”.
Agarra no copo e bebe a água toda de uma vez.
Ele sorri e ela sorri também.
Quando se lembra de lhe perguntar o nome, já ele tinha desaparecido. Vê-o, ao ,longe, a tirar qualquer coisa de um caixote do lixo.
São horas de ir buscar os netos.
Há-de contar-lhes esta história. Até para eles aprenderem a maneira mais rápida e eficaz de curar uma dor de cabeça.
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«ACTIVA» de Setembro 2012