sábado, 31 de julho de 2010

VAMOS A BANHOS

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

PARECE QUE É desta que vamos para Pedrouços.
Todos os dias a minha mãe insistia, mas o meu pai torcia o nariz, com os argumentos de sempre - a situação política instável e o nascimento do meu irmão.
A minha mãe tentava sossegá-lo:

- A monarquia, por muito que lhe custe, está de pedra e cal, e o nosso filho só nasce em fins de Outubro. Não vejo motivo nenhum para não irmos em Agosto para Pedrouços. De resto, a D. Bebiana está à nossa espera, e nunca aluga a casa a mais ninguém. Era uma grande desfeita que lhe fazíamos.
- De resto — acrescentou logo a minha avó — é só olhar para a cara do Zezito para ver como está a precisar de bons ares.

(O Zezito sou eu. Odeio que me chamem assim mas felizmente só a minha avó tem essa mania — e normalmente só quando estou doente.)
Desde sempre que oiço dizer que as nossas idas para Pedrouços são por minha causa, porque aquela aldeia é conhecida pelos seus bons ares e pelas suas águas, que operam milagres na cura da anemia, do raquitismo e da depressão. Há mesmo estrangeiros que vêm dos seus países só por causa dos bons ares de Pedrouços.
Eu nunca tive anemia nem raquitismo nem depressão — mas a minha avó diz que vale mais prevenir que remediar - e nestes últimos tempos não tem feito outra coisa senão dizer à minha mãe que eu ando muito descorado.
Aqui há dias queria mesmo levar-me à Farmácia Peninsular, na Rua Augusta, para me comprar Pílulas Pink, que é um remédio de que toda a gente fala e que, segundo diz a minha avó, “transforma o sangue pobre e viciado em sangue puro e generoso”.
Se há comprimidos que fazem as pessoas generosas…venham eles! Mas a minha mãe não deixou, porque disse que se estava mesmo a ver que isso era uma grande aldrabice.
A minha avó amuou, ninguém comprou Pílulas Pink, e eu continuo descorado.
Então o meu pai acabou por concordar com a nossa ida.
Claro que ele só vai aos fins-de-semana, porque a livraria não pode fechar. E também porque não é muito apreciador das belezas de Pedrouços... Assim que a minha mãe começa a fazer os preparativos para a nossa ida, começa ele a recitar uma frase do Ramalho Ortigão, um autor de quem ele gosta muito.
(Quer dizer, o meu pai diz que ele é um grande escritor, mas não gosta dele como pessoa porque é monárquico. O meu pai diz que a gente tem sempre de separar essas coisas, embora eu ache difícil…Mas o meu pai consegue: lembro-me uma vez de ver o Ramalho Ortigão, que é já muito velho, entrar na livraria, e o meu pai olhava para ele como eu olharia para o Júlio Verne se o visse na minha frente.)
Então o meu pai recorda a frase de um livro dele sobre as praias, em que diz, a respeito de Pedrouços: “pela manhã a gente abre a janela do nosso quarto, deita a cabeça de fora e pode fazer a barba no espelho do vizinho do prédio em frente.”
Eu também acho que Pedrouços já tem gente a mais mas, mesmo assim, tudo é preferível a esta pasmaceira de Lisboa no verão.

«JN» de 31 Jul 10

sábado, 24 de julho de 2010

O ALFREDO VOLTOU

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".


ESTÁVAMOS A TOMAR o pequeno almoço, ainda o meu pai não tinha saído para a livraria quando, de repente, ouvimos um grito da Rosa.

- Um assalto! — disse logo a minha avó, levantando-se da mesa.

(A minha avó anda muito preocupada porque os jornais não param de falar da onda de assaltos e violência — “onda vermelha” é assim que eles escrevem — na cidade de Lisboa)
Mas não era um assalto, era apenas o Alfredo que voltava!
A Rosa estava branca como se tivesse visto um fantasma, e quase desmaiara ao dar de caras com ele no patamar das escadas de serviço. Mais magro, com olheiras e barba de muitos dias, depois de ter andado por aí, a seguir à fuga dos calabouços da esquadra do Caminho Novo, juntamente com alguns amigos.

- Eu não te disse, rapariga, que ele andava escondido? — disse o meu pai, acrescentando — Se calhar por causa dele e dos primos dele é que isto deu no que deu…
- O senhor sabe que não é verdade! — gritou o Alfredo, que pode estar fraco de carnes mas não está fraco de voz—Desta vez a culpa foi toda…
- Pronto, pronto! – interveio a minha mãe — o Alfredo está cá fora e está bem, hoje é dia de festa e não quero discussões!

E para a festa ser a sério, deu o dia livre à Rosa.

- Maus hábitos — resmungou logo a minha avó – Hoje dás-lhe o dia livre, para a semana também, não tarda está a exigir-te um dia livre todas as semanas! Ouve o que te digo! O pessoal tem que ser tratado com rédea curta senão abusa logo! E de resto...

E a minha avó pôs aquela cara que ela costuma reservar para os grandes problemas do mundo:

- De resto, temos muito poucos motivos para festas… A menina não lê jornais? Não sabe o que se passa?
- Sei! Sei que, por exemplo, a sua querida rainha Maria Pia…
- Dona Maria Pia, se faz favor... — emendou logo a minha avó
- …mandou vir um chapéu de Paris que custou 18 contos de réis! Isso é que eu sei! 18 contos por um chapéu, quando o povo está na miséria!

A voz da minha mãe até tremia.
(Para falar verdade, eu nem consigo imaginar o que sejam 18 contos de reis…Já os 60 reis que eu pago pelo “Texas Jack” no quiosque aqui em frente me parece uma fortuna… E oiço sempre o meu pai barafustar quando paga 80 reis pela onça de tabaco francês que fuma…)
A minha avó não lhe respondeu e continuou:

- Dizia eu que não há motivo para festas quando o rei de Espanha acabou agora de escapar a um atentado! E foi por pouco! O anarquista estava mesmo a disparar a pistola quando foi preso!
- Então... — disse a minha mãe – se escapou, ainda bem! Se tivesse morrido é que era mau!
- Não faça de conta que não percebe! A Espanha é mesmo aqui ao lado, hoje o atentado é contra Afonso XIII, amanhã é contra D. Manuel! E nem sempre falham. Lembre-se do que aconteceu a D. Carlos e D. Luís Filipe…

Suspirou muito fundo e rematou:

- Os anarquistas estão por toda a parte! É o fim do mundo.

E lá foi para a sua novena, deixando a minha mãe a lavar a loiça do pequeno almoço. Quem dava dias livres às criadas tinha de acarretar com as consequências.
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«JN» de 24 Jul 10

sábado, 17 de julho de 2010

PIOR QUE ARRANCAR UM QUEIXAL…

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

ESTA FOI uma semana complicada.
O meu pai entrava em casa a desoras, ou até mesmo nem entrava em casa.
“Anda a dormir sabe-se lá por onde”, murmurava a minha mãe, que todos os dias refila porque não se encontra em estado de ter ralações como esta. Claro que a revolução não tem culpa nenhuma que a minha mãe esteja de esperanças, mas ela não pensa nisso.
É que a Revolução estava marcada para dia 14!
Finalmente!
Desta vez é que era!
Comemorava-se mais um aniversário da Tomada da Bastilha — que é uma data muito importante para os franceses, porque foi quando eles também puseram os reis deles fora do trono,
(eles foram muito mais apressados do que nós, e acabaram com a monarquia há mais de 120 anos…)
era uma data simbólica, e aproveitava-se o facto de D. Manuel andar distraído, de férias e de amores lá pelo Grand Hotel da Mata do Buçaco…
Mais uma vez estava tudo, tudo, para acontecer... mas mais uma vez não aconteceu.
E o meu pai não parava de barafustar que a culpa era toda daqueles incompetentes de Caçadores-2 que, à última da hora, quando se estava à espera que viessem por ali abaixo — tinham roído a corda e nem um passo tinham dado.
Bom, mas se estava tudo, tudo preparado para dia 14 — então ficaria para dia 16, que era para os ânimos não esfriarem.
“Desta vez”, disse o meu pai, “ vamos nós tomar conta do assunto!”
Quando o meu pai diz “nós”, eu já sei que se refere aos seus “irmãos” da maçonaria. Esses, segundo ele, sabem o que fazem, são rigorosos, têm a cabeça no lugar. “Os outros”, da Carbonária, são uns loucos que estragam tudo…
Então, para que nada pudesse falhar no dia 16, o meu pai contou que se tinha organizado um novo plano, que dividia a cidade de Lisboa em 6 grandes comandos, e que assim tudo ficava mais fácil de orientar.
“Desta vez é que não falha!” — disse ele para a minha mãe, antes de, mais uma vez, sair porta fora.
A minha mãe até estava admirada por ele ter falado tanto. Era a prova de que realmente estava tudo mesmo, mesmo para acontecer. Uma questão de horas, de minutos.
Mas o certo é que já hoje é dia 17- e a monarquia ainda cá está.
Desta vez parece que, no meio de mais uma reunião, alguém disse que ainda não era oportuno…
Pelos vistos, custa mais tirar a república de cá do que custou tirar da minha boca aquele queixal infectado que me fazia imensas dores! O dentista arrancou-mo que foi uma beleza. Gritei que nem um vitelo, aquilo era sangue pelo consultório todo, e um cheiro a éter que agoniava — mas pronto, cortou-se o mal pela raiz (na verdadeira acepção da frase…)
“Tudo pronto para sair para a rua, tudo controlado, os marinheiros de Alcântara e o Arsenal a postos — e vem aquela alimária e diz que não é ainda oportuno!!!” — grita o meu pai que, nestes últimos dias, não tem feito outra coisa.
Confesso que não faço ideia nenhuma do que seja “alimária” e assim que puder vou ver no dicionário.
Mas tenho cá um palpite que não deve ser coisa boa.
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«JN» de 17 Jul 10

sábado, 10 de julho de 2010

FÉRIAS NO BUÇACO

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A ROSA NÃO PÁRA
de chorar, sem notícias do Alfredo.
O meu pai diz-lhe que não é caso para alarme, o mais provável é ele ter arranjado maneira de fugir e estar escondido num sítio qualquer.

- E por que é que não me dá notícias? — chora a Rosa
- Porque está escondido. Se está escondido é porque não quer que ninguém o veja — e faz ele bem!

E o meu pai desatou logo a resmungar que é por estas e outras que a revolução tem falhado sempre.

- Começam a falar com quem não devem, começam a aparecer às namoradas, dão com a língua nos dentes - e lá se vai tudo por água abaixo.

Fez uma pausa e murmurou:

- Mas desta vez não vai falhar…

A minha mãe sentiu-se logo maldisposta, e pediu um chá de tília.

- Fernando, não me esconda nada! É agora? Diga-me: é agora?

O meu pai sossegou-a:

- Esteja descansada! Então não sabe que o nosso rei está de férias? Se o rei - que, segundo diz a senhora minha sogra, só pensa na segurança e bem-estar do seu povo - foi tranquilamente para o Buçaco, ouvir os passarinhos - é porque está tudo bem.
A minha mãe não pareceu convencida:

- Eu conheço-o, Fernando…

Então o meu pai deu-lhe um beijo e saiu.
A minha mãe não sossegou nessa tarde.
A minha avó ainda pensou em mandar a Rosa chamar a Dra. Adelaide, mas a minha mãe não deixou:

- Nem pense, minha mãe! Se anda conspiração no ar, de certeza que a Dra. Adelaide está lá metida, e não vai ter tempo para acudir a achaques sem importância…Isto é nervoso, já passa. E realmente, o Fernando tem razão: se D.Manuel foi de férias para o Buçaco, é porque está tudo calmo.
- E ao que parece não está lá sozinho... — resmungou a Rosa, entrando com a tisana para a minha mãe – Esse ao menos manda chamar a namorada e não lhe esconde nada…

A minha avó saiu logo em defesa do bom nome do seu rei:

- D.Manuel não tem namorada nenhuma. Isso são más línguas!
- Ora essa! – defendeu-se a Rosa -Toda a gente sabe que a actriz está lá com ele! E que ele a cobre de jóias! E que até já lhe deu um automóvel!
- Pronto, já bebi o chá, leva a xícara — disse a minha mãe, para repor a paz na sala.

Finalmente fez-se silêncio.
A minha mãe tricotava qualquer coisa em tons de azul.
No bastidor, a minha avó bordava a palavra “BEBÉ” a ponto de cruz, no meio de um babeiro.
Eu tentava passar da primeira página de “Os Miseráveis”, de um escritor francês muito importante chamado Victor Hugo, que o meu pai me mandou ler há mais de um mês.

- Não há dúvida que os nossos reis não podem ver uma actriz na sua frente…--murmurou então a minha mãe - Já o avô, foi o que foi…
- Não é bonito falar mal dos mortos — disse logo a minha avó.

E era bonito D. Luís andar para todo o lado com a Rosa Damasceno? E é bonito este andar feito doido com a Gaby Deslys? O país numa situação tão grave, o povo a passar fome, e eles a gastarem dinheiro desta maneira?
A minha avó largou o bastidor sobre a mesa.

- Quando a menina fala como o seu marido fica insuportável.

E retirou-se para o quarto.
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«JN» de 10 Jul 10

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Um pequeno conto musical - Convite

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Por Alice Vieira

VAMOS estrear Um Pequeno Conto Musical no próximo dia 11, domingo, às 21h30m, no Jardim da Cascata do Palácio de Belém. Imprima o convite para assistir ao concerto ao vivo da Orquestra Metropolitana de Lisboa, com narração de Alice Vieira e direcção musical de Cesário Costa. Na altura será lançado o livro com o texto e música, editado pela Caminho.

IMPORTANTE:
é obrigatória a apresentação do convite na entrada do Museu da Presidência, em Belém, e é preciso confirmar até amanhã, dia 8 Jul 10, pelo tel. 213 617 344.

sábado, 3 de julho de 2010

O MEU AMIGO AQUILINO

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Por Alice Vieira

O ALFREDO foi preso.
A Rosa chora dia e noite, sobretudo quando se lembra do Sr.Mateus, nosso vizinho preso já há meses e de quem nunca mais se ouviu falar.
O meu pai já lhe disse que o Sr.Mateus é diferente: foi apanhado a fazer uma bomba. Ao passo que o Alfredo foi levado num grupo de muitos, que tinham sido denunciados à Secreta, mas não havia bombas nenhumas.

- Além disso — explica ele — diz-se por aí que o Mateus fugiu para França.
- Ai, Sr. Fernando!, pela sua rica saúde, não me diga que o meu Alfredo vai fugir para França!

E a Rosa corre para a cozinha, enquanto o meu pai aproveita para dizer que os da Carbonária são todos uns inconscientes, sem cuidado nenhum, e por isso estão sempre a ser presos.

- Ouve o que te digo, Zé Joaquim: não é glória nenhuma ser preso! Devemos sempre ter inteligência suficiente para sabermos trocar-lhes as voltas! Glória é lutar por uma causa justa!

Claro que, se formos presos, temos de nos portar como verdadeiros homens, mas o nosso objectivo é prosseguir a luta cá fora!
Nestes últimos tempos, o meu pai fala sempre em jeito de comício.
E a propósito da fuga do Sr. Mateus, o meu pai recordou um amigo dele chamado Aquilino Ribeiro, que eu ainda me lembro de ver na livraria, que um dia foi apanhado a fazer explodir uma bomba, foi levado para a prisão, e há mais de dois anos desapareceu.

- Está em França. De vez em quando tenho notícias dele. E, se bem o conheço, de certeza que não está parado…

Eu gostava de ouvir este amigo do meu pai. Tinha uma fala engraçada, diferente da nossa.

- O Aquilino nasceu perto de Viseu, e os beirões falam “achim” — dizia o meu pai.

Estava sempre a conspirar e a fabricar bombas e a escrever coisas contra a monarquia.
E tinha paciência para mim.
Uma vez contou-me que até tinha inventado para si próprio um nome diferente, para poder escapar melhor.

- Sou Alberto Ramos. Já sabes. Só me tratas por Alberto Ramos, ouviste?

Alberto Ramos — para que a pessoa que lhe alugava o quarto, e a lavadeira que lhe tratava da roupa não desconfiassem de nada, ao verem as iniciais “A.R.”, que a mãe dele tinha bordado em toda a roupa…
Lembro-me um dia, estava-se no Carnaval, de ver o meu pai chegar a casa vermelho de fúria, a chamar-lhe louco varrido, inconsciente e mais não sei o quê.

- Mas que foi que ele fez? — perguntou a minha mãe.
- Nem vais acreditar…Imagina que aquela alma do diabo, procurado pela polícia em toda a parte, mascarou-se de dominó e foi pedir lume ao tenente-coronel Dias!!

O meu pai dava voltas à mesa da casa de jantar, tal era a fúria:

- Ao tenente-coronel Dias! O n.º 1 da polícia do reino!

Pouco depois dessa aventura, ouvi o meu pai dizer que ele tinha fugido para França — e nunca mais me lembrei dele a não ser agora, por causa do Alfredo.
Para além da prisão do Alfredo, a única coisa importante que aconteceu é que se marcaram eleições para dia 28 de Agosto.
Este ano é que o meu pai não vai pôr o pé na praia.
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«JN» de 2 Jul 10