sábado, 29 de maio de 2010

A MINHA MÃE FEZ ANOS

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A MINHA MÃE fez anos ontem.
Vieram bolinhos de amêndoa e rebuçados de ovo da Confeitaria Nacional, o meu pai foi a Belém comprar pastéis, tirou-se a loiça de Vista Alegre do aparador e, na véspera, a Rosa gastou uma embalagem inteira de Pomada Amor a arear as pratas, para tudo ficar reluzente.
Veio pouca gente, para ela não se cansar: as vizinhas de baixo, e a Dra. Adelaide Cabete, que é médica da minha mãe.
A Dra. Adelaide, como diz a minha avó, que não morre de amores por ela, “enche uma casa”. E quando está muito bem disposta, até canta modas alentejanas, dos seus tempos de juventude em Elvas.
Tempos bem difíceis, segundo o meu pai já me contou: trabalhou na apanha da ameixa até muito tarde, foi criada de servir, até que casou e o marido empurrou-a para os estudos, apesar de todas as dificuldades.
Já a ouvi contar que esfregou muitas vezes o chão com o livro de anatomia ao pé do balde, para ir decorando o que era preciso.
Por isso é agora uma grande médica. (“E uma grande republicana!”, acrescenta logo o meu pai).
Por isso ontem, de repente, virou-se para a Rosa e disse-lhe que o melhor que ela tinha a fazer era estudar, mas estudar mesmo a sério, para vir a ser uma mulher “ daquelas de que a República precisa”.

- Sei ler e escrever! — disse a Rosa.
- Foi a minha filha que fez essa caridade… — exclamou logo a minha avó.

Para a minha avó, todo o bem que fazemos aos outros em geral e à Rosa em particular - é sempre por caridade.
Esqueceu-se foi de contar como barafustava de cada vez que a Rosa largava a cozinha para se sentar ao lado da minha mãe, diante dos livros.

- É muito bom mas não chega — continuou a Dra. Adelaide – é preciso ir para uma escola, tirar um curso, ter opinião…
- Opinião tem ela que chegue… - murmurou a minha avó que, para rematar a conversa, propôs que se passasse à sala para verem os presentes que a minha mãe tinha recebido.

Este ano a minha mãe não teve sorte nenhuma com os presentes: só recebeu coisas para o meu irmão!
Até o meu pai! Quando eu esperava que ele lhe oferecesse uma salva de prata da Casa Leitão (que é sempre o que ele lhe dá em datas festivas) — dá-lhe uma máquina de costura! Uma enorme máquina Pfaff, daquelas que custam sete mil reis e vêm anunciadas em todos os jornais como a maior maravilha.
Pode ser uma maravilha — mas é uma maravilha que vai dar muito trabalho à minha mãe !
Para além disso - casaquinhos, babeiros, cueiros, chambres, toucas, até parecia a montra do Eduardo Martins!
Para ela mesmo só recebeu um frasco de “Heno de Pravia”, que é um perfume que agora se vende em Espanha, oferta da vizinha Henriqueta, que veio há dias de Badajoz.
***
(Ah, é verdade: o rei já voltou. Levou 11 dias a ver a coroação do rei de Inglaterra — mas lá voltou…Não sei se terá feito muita falta, eu cá não dei por nada.)

«JN» de 29 Mai 10

quarta-feira, 26 de maio de 2010

AS NÃO-NOTÍCIAS

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Por Alice Vieira

ÀS VEZES ainda costumo guardar recortes de jornais. Hábitos que ficam…
Eu sei que hoje já poucos lêem jornais.
Jornais a sério, quero eu dizer.
Jornais — para utilizar uma expressão muito na moda e que eu detesto — “em suporte papel”.
Hoje quase toda a gente clica e lê na net — o que não tem nada a ver com o prazer que dá a leitura de um jornal — até porque se perde muita coisa.
E acabei de recortar uma notícia que me apareceu hoje nas páginas centrais do “Diário de Notícias”.
Porque estava muito bem escrita?
Porque era extremamente importante?
Porque era algum acontecimento a que eu não queria faltar?
Nada disso.
Pura e simplesmente porque era…uma não-notícia.
E é terrível a frequência com que hoje os jornais se enchem de não-notícias.
Os jornais, onde nunca há espaço, por exemplo, para noticiar coisas de cultura, encontram sempre espaço para noticiar o que não interessa a ninguém.
Uma vez estive uma semana no Funchal, integrada numa semana cultural de uma escola. Uma semana em que tinha havido exposições, debates, encontros com autores, etc, etc. Nunca a televisão se lembrou de ir ver o que lá se passava. Uma noite, um grupo de vândalos à solta lembrou-se de partir uma data de vidros da escola. Resultado: logo de manhãzinha a televisão já lá estava.
Mas vamos lá à tal notícia que ocupava hoje espaço no “Diário de Notícias”.
Então a história era esta: a mulher de Tony Blair estava de manhã em casa a fazer torradas, e esturrou uma torrada. Vai daí, o alarme lá de casa tocou e, alguns momentos depois, apareceram os bombeiros, pensando que havia fogo. A senhora agradeceu, disse que não era preciso nada, e eles foram-se embora.
Pronto.
A história é esta.
E é isto que é importante para o jornal! Que até ilustra a notícia com… uma fotografia do Tony Blair, coitado, que nem entra na anedota…
E eu pergunto-me o que é que esta notícia nos traz assim de tão importante…
Que a mulher do Tony Blair é uma naba a fazer torradas?
Que o alarme da casa deles funciona bem?
Que os bombeiros ingleses respondem às chamadas?
Que o Tony Blair saiu sem tomar o pequeno almoço?
É que realmente não consigo mesmo atinar.
Porque isto, evidentemente, é uma não-notícia. E para as não-notícias há sempre espaço. Para as outras é que nem tanto…
Aqui há meses, a Câmara de Lisboa assinou um protocolo com a Casa Fernando Pessoa.
Um protocolo importante, claro.
Tão importante que a directora da Casa Fernando Pessoa, a escritora Inês Pedrosa, decidiu lá organizar um concerto, trazendo a Lisboa um dos maiores intérpretes de Fernando Pessoa : o cantor e compositor italiano Mariano Deidda.
Mariano Deidda tem dedicado grande parte da sua vida a musicar, a cantar e a divulgar a poesia de Fernando Pessoa, tem CD’s gravados (que é quase impossível encontrar à venda por cá…) já fez espectáculos no CCB e no Teatro Nacional. (Já agora, quem estiver interessado procure no Youtube que encontra)
Ter Mariano Deidda na Casa Fernando Pessoa era um privilégio.
E foi, de facto, um privilégio assistir àquele concerto.
Uma amiga minha jornalista estava lá, para fazer a reportagem para o jornal onde trabalha (não, não era o” Diário de Notícias”, para que conste)
Assistiu à assinatura do protocolo, falou com o presidente da Câmara, com a directora da Casa Fernando Pessoa, com Mariano Deidda, e assistiu ao concerto.
Tudo como lhe competia.
Tudo o que qualquer jornalista faria.
No dia seguinte, ao abrir o jornal onde a minha amiga trabalha, encontro uma fotografia do Presidente da Câmara a assinar o protocolo, e meia dúzia de linhas a explicar de que protocolo se tratava.
Mais nada.
Nem sequer a menção de que, a seguir, tinha havido um extraordinário concerto de um dos maiores intérpretes de Fernando Pessoa, que se tinha deslocado de Itália a Lisboa para dar este único espectáculo.
Nem uma palavra.
A minha amiga nem conseguia falar direito quando me ligou, a explicar que todo o resto da reportagem lhe tinha sido cortada porque, segundo quem manda no jornal onde ela trabalha, essas coisas culturais não têm importância nenhuma.
Apesar de tudo, quero crer que ainda há jornais onde a cultura tem algum espaço. Cada vez mais reduzido, é certo, e com um conceito de cultura cada vez mais duvidoso — mas pronto, ainda dão algum espaço a estas coisas.
Mas, para a maioria, se calhar o que é mesmo, mesmo importante, aquilo que toda a gente tem mesmo, mesmo de saber, é que a mulher do Tony Blair deixou esturrar as torradas e que, apesar disso, não aconteceu nada.
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AUDÁCIA de Maio 2010

sábado, 22 de maio de 2010

... E O MUNDO CONTINUA!

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

AFINAL O COMETA chegou, e não aconteceu nada!
O dia 18, que muita gente dizia ser o fim do mundo, foi uma quarta feira igual a todas.
Devo mesmo dizer que foi um dia particularmente calmo, sem bombas, sem rusgas, sem prisões - pelo menos que eu desse por isso.
O meu pai saiu à hora do costume para abrir a livraria, avisando que não esperássemos por ele para jantar, porque possivelmente ia até S. Pedro de Alcântara ou até ao monte de S.Gens, os melhores lugares da cidade para se ver a passagem do fenómeno.
A minha mãe ainda pensou em ir com ele mas depois teve medo que aquilo deitasse para muito tarde — os cometas nunca têm hora certa de chegar… - e a médica está sempre a dizer-lhe que agora tem de dormir muito.
A minha avó passou o dia todo a rezar a Sto. Expedito, e a Rosa andou sempre com a garrafa de oxigénio dentro do bolso do avental.
Eu tive as aulas do costume, e às quatro horas já estava em casa.
Até ao fim do dia ainda esperei que acontecesse qualquer coisa, mas às dez da noite estava tão cheio de sono que caí na cama e só acordei na manhã seguinte.
Ao pequeno almoço o meu pai contou que no alto de S. Pedro de Alcântara se tinha visto um clarão no céu lá pelas duas da madrugada — e mais nada.
Deste fim do mundo já nos livrámos.
É claro que o meu pai não perde nenhuma oportunidade para fazer um discurso — e lá foi dizendo, entre dois goles de café com leite, que os cometas, quando aparecem, são sempre sinais de grandes mudanças.

- Desgraças! – murmurou a minha avó
- Mudanças, senhora minha sogra — emendou ele — eu disse “mudanças”! Não tenho dúvidas nenhumas de que este irá ficar conhecido como “o cometa da República”, porque também não tenho dúvidas nenhumas de que a monarquia está por um fio…Atentai no que eu vos digo: a República está a chegar!
- O rei é que nunca mais chega! — exclamou a minha mãe.

De facto, está toda a gente admirada com a demora de D. Manuel II em Londres. Jorge V, o novo rei inglês, já foi coroado, e o nosso parece que não tem pressa nenhuma de regressar à pátria…
Saiu de cá no dia 15, já hoje estamos a 22, e ele nada.

- A Gaby deve andar a mostrar-lhe a cidade… - e a minha mãe deu uma gargalhada.
Segundo me contou a Rosa (que lhe contou o Alfredo), o rei anda apaixonado por uma actriz francesa que se chama Gaby Qualquer Coisa (a Rosa diz que é um apelido complicado, e nomes complicados não é com ela…)

Conheceu-a numa das viagens que fez, e agora, sempre que vai ao estrangeiro, aproveita para estar com ela.

- Coitadinho… - diz a Rosa (que é muito republicana mas que, em questões de coração, deixa de ter partido) — tem de aproveitar enquanto pode, pois qualquer dia obrigam-no a casar, e lá se vai a actriz!

E pronto, lá passámos mais uma semana.
Sem fim do mundo e sem rei.
Se demorar muito, se calhar ainda a República chega primeiro do que ele.

«JN» de 22 Mai 10

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A SENHORA DO PAI

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Por Alice Vieira

A PRINCÍPIO
nem ligou. Sempre que voltava do pai ele não se calava, naquele seu linguajar de bebé, a querer meter o mundo todo nas poucas palavras que o seu vocabulário permitia. Ela sorria, enquanto ia desfazendo a mala de fim de semana, com o Rato Mickey de enormes orelhas estampado bem a meio.
Foi a insistência dele que lhe chamou a atenção. E foi então que, nitidamente, percebeu o que ele dizia: “a senhora do pai.”
Sentou-o ao colo, fez-lhe uma festa no cabelo, tudo com muita calma, e foi murmurando:

- A senhora do pai?
Ele acenou com a cabeça.

- O pai tem uma senhora?
Ele acenou com a cabeça.

- Miguel, olha para a mãe…
Ele fixou nela os seus olhos esverdeados.

- Diz à mãe, Miguel… O pai tem uma senhora?
Ele voltou a acenar e acrescentou:

- No carro.
Ela ia perdendo a cabeça. Ainda nem estavam divorciados e já ele andava a enfiar mulheres dentro do carro, e logo no fim de semana em que ela o deixara ficar com o filho. Podia-se pensar que, pelo menos nesses dias, ele se portasse como um pai a sério, até porque podia estar em causa a futura regulamentação do poder paternal, mas não, se calhar “a senhora” até já ficava lá em casa…
Tentou acalmar-se:

- E quando o pai veio trazer o Miguel, a senhora estava no carro?
Ele voltou a acenar com a cabeça mas, farto do interrogatório, deslizou-lhe do colo e foi brincar.
Ela ainda pensou em ligar à mãe a contar, mas desistiu.

- Vamos ter uma conversa, meu menino…- murmurou, discando o número dele no telemóvel.
Combinaram encontrar-se no café, dali a minutos.
- Estás com uma voz! — disse ele — É grave?
- Daqui a dez minutos – repetiu ela.
- Não pode ser aí em casa? — estranhou ele.
- No café — disse ela, desligando.

Não queria correr o risco de o Miguel entrar na sala e ouvir a conversa, café era sítio neutro.
Assim que ele chegou, nem o deixou fazer qualquer pergunta:

- Não me podias ter dito que já tinhas arranjado uma namorada?
Ele olhou-a, espantado.

- Que eu o quê?
- Não te faças de tolo. O Miguel contou-me.

Ele parecia cada vez mais espantado:

- Mas contou-te o quê?
- Que tinhas uma namorada.
- O Miguel disse isso? Uma namorada?
- Não disse uma namorada. Mas disse que o pai tinha uma senhora no carro… Sabes que o vocabulário dele ainda…

Uma enorme gargalhada dele interrompeu-lhe o discurso, e surpreendeu-a, aquele não era propriamente um motivo para risadas.

- Uma senhora… no carro... — repetia ele, rindo cada vez mais. Depois recompôs-se, e disse:
- E claro que pensaste logo no pior. Que eu tinha metido o meu filho no carro com uma galdéria qualquer… Nunca te passou pela cabeça que fosse… A voz do GPS a ensinar o caminho?

Ela olhou-o sem saber se devia ficar furiosa consigo própria, se rir à gargalhada.

- O Miguel ouviu, ficou muito admirado, eu entrei na brincadeira e disse-lhe : “o carro novo do pai tem uma senhora!”

Acabaram por rir os dois, ela a censurar-se intimamente por aqueles ciúmes doentios, que nem com a separação tinham passado, e voltou para casa, contente por não ter falado com a mãe, o que ela não lhe diria agora, quando ela lhe contasse.
E ele entrou no carro, sorrindo. Tirou o telemóvel do bolso, discou um número e, em voz mansa disse:

- Pronto, já arranjei tudo. Veio-me à cabeça uma desculpa verdadeiramente genial! Depois eu conto-te. Mas para a próxima temos de ter mais cuidado.
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ACTIVA de Maio 2010

sábado, 15 de maio de 2010

VEM AÍ O COMETA

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

D. MANUEL LÁ PARTE AMANHÃ para Londres, para assistir à coroação do novo rei de Inglaterra.

- Agora é que lhe arranjam casamento com a tal princesa inglesa…- diz a minha avó.
- Não me parece…- diz a minha mãe — Não estou a ver a Rainha a deixar casar o filho com uma princesa que não é católica…

A Rosa, que até ganhou novas cores desde que o Alfredo lhe voltou a aparecer ao domingo (“ai homem de Deus, que já te fazia na choça!”), garante que o rei vai mas é encontrar-se com uma actriz francesa que conheceu há uns tempos…Pelo menos é o que o Alfredo conta, e ele anda sempre muito bem informado.
Mas nestes últimos dias, cá em casa - e ao contrário do que é costume…- nem se tem ouvido falar em monarquia ou república.
Agora, anda toda a gente aflita por causa do cometa.
Até eu não me sinto lá muito seguro, sobretudo depois de ver a capa da última “Ilustração Portuguesa”, que traz o monstro que dentro de dias pode atacar a Terra e dar cabo de nós.
O Cometa Halley está a chegar — é o que se ouve em toda a parte. Dizem que vai passar tão perto da Terra, que o mais certo é esbarrar nela e ninguém pode prever o que vai acontecer. Dizem que até há gente que já se suicidou por causa disso.

- É o fim do mundo — murmura a minha avó.

(Quando mataram D. Carlos e D. Luís Filipe, a minha avó também disse que era o fim do mundo.
Quando foi do terramoto de Benavente, a minha avó também disse que era o fim do mundo.
De cada vez que rebentam bombas, a minha avó também diz que é o fim do mundo.
Digamos que o fim do mundo já se vai tornando um hábito cá em casa.)
Ontem a Rosa chegou da Praça da Figueira e disse:

- Andam a vender garrafas de oxigénio por causa do cometa. Eu já comprei uma.

O meu pai até deu um berro.
E deu mais outro quando ela acrescentou que, para lá das garrafas de oxigénio, também estavam a vender máscaras de gás e comprimidos milagrosos. O dinheiro dela é que só tinha dado para a garrafa.
Indignado, o meu pai fez logo ali um comício republicano, a protestar contra a ignorância em que queriam manter o povo, para assim o poderem explorar melhor.

- Se as pessoas tivessem instrução, saberiam que isso é tudo obra de vigaristas, e que desde o ano passado os cientistas observam o cometa, e estão preparados para a sua chegada.
- Dizem que a cauda é enorme e que, com o embate, se vão espalhar gases desconhecidos que podem devastar o planeta! — disse a minha avó.
- Mas quais gases…Aquilo é tudo vapor de água!.... — o meu pai estava mesmo muito ofendido com a nossa ignorância.
- Não quero ouvir cá em casa mais disparates destes! — disse ele.

E, virando-se para a minha mãe, acrescentou:

- Preocupa-te com o enxoval do rapaz, que já tens bastante com que te ocupar!

E saiu.
Estive mesmo para perguntar:

- E se for uma rapariga?

Mas não perguntei: com as desgraças do cometa, a ignorância do povo, e o rei a viajar para Inglaterra, não quis agravar a situação.
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«JN» de 15 Mai 10

sábado, 8 de maio de 2010

MORREU O REI DE INGLATERRA

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

MORREU O REI de Inglaterra, e cá em casa não se fala noutra coisa.
Não é que a morte do rei me interesse muito: só estou ligeiramente preocupado porque D. Manuel vai ficar uma data de dias em Londres e, com tanto tempo sem rei, se calhar agora é que vem a república.
A minha avó está muito ofendida comigo por eu não me lembrar do dia em que o rei de Inglaterra veio a Lisboa, mas nessa altura eu tinha sete anos, e confesso que, até hoje, as únicas coisas que me lembro de ouvir contar sobre o rei de Inglaterra é que ele tinha subido ao trono muito velho porque a mãe nunca mais morria; e que por causa dele é que o Parque da Liberdade se tinha ficado a chamar Parque Eduardo VII.
O meu pai diz que é muito má altura para D. Manuel ir ao estrangeiro porque por cá as coisas andam mal: acho que rebentou um grande escândalo num banco chamado Crédito Predial, e a gente já sabe que quando se mete dinheiro pelo meio, fica tudo de cabeça perdida.

- Pode ser que ele não fique por lá muito tempo…- disse o meu pai.
- Lembra-te da coroação…- disse a minha mãe e, de repente, ela e o meu pai desataram a rir. A minha avó franziu as sobrancelhas, murmurou “mais respeito!”, e eles calaram-se.

Então o meu pai contou-me que há sete anos, quando a rainha finalmente morreu e o filho subiu ao trono, estava já tudo preparado para a coroação, com representantes de todos os países, (incluindo o nosso, que mandou o príncipe herdeiro, que então era D. Luís Filipe, porque ainda não tinha sido morto…) - mas na véspera, ao fumar o seu cigarrito, o rei tinha-se sentido muito mal e lá veio o médico a correr que diagnosticou uma apendicite!.
Eu não sei que doença é essa, mas o meu pai disse que era uma coisa muito grave e que foi preciso operar, e que foi a primeira vez que foi usada a “anestesiologia”, que é uma ciência que ensina os médicos a darem uns remédios ás pessoas que elas parece que estão mortas mas não estão, e depois acordam e não sentiram nada.
E por causa da apendicite, a coroação do rei, marcada para Junho, teve de ser em Agosto. E lá voltaram os reis todos para casa.
Mas é claro que agora, com o rei já morto, essas coisas não vão acontecer.
O meu pai também parece ofendido por eu não me lembrar nada do que aconteceu há sete anos. Republicano como ele é, nunca pensei que a minha ignorância dos reis de Inglaterra o incomodasse tanto.

- Nem te lembras de quando D. Carlos foi a Inglaterra assinar o segundo Tratado de Windsor?

Foi quase logo a seguir…
Estive para lhe dizer que não me lembrava do primeiro, quanto mais do segundo, mas calei-me.

- Esse ano de 1902 foi mesmo muito importante — murmura ele.

Dou voltas à cabeça, a tentar recordar em que republicano é que ele estará a pensar, em que conspiração falhada, comício, greves, bombas…
Nada.
Para mim, o ano de 1902 é um deserto.
Até que o meu pai respira fundo e diz:

- Foi o ano em que foi fundado o Sport Lisboa e Benfica.

E sai de casa, para ir abrir a livraria.
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«JN» de 8 Mai 10

sábado, 1 de maio de 2010

EM ESTADO DE CHOQUE…

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

ESTOU em estado de choque.
O meu pai chegou hoje à tarde do Porto, onde foi ao congresso do Partido Republicano.
Ao jantar, pelo meio dos pastéis de bacalhau, começou a contar o que se tinha passado:

- Os preparativos para a revolução já estão em marcha! Isto agora vai! Mas temos de ser cuidadosos se não queremos que…

A voz da minha avó:

- Ó Rosa, você acha que isto é uma travessa que se apresente ? Ora vá arranjar tudo como deve ser!

A minha mãe olhou para a minha avó, o meu pai suspirou e continuou:

- …se não queremos novo falhanço como no dia 1 de Abril. Falou-se sobre as investidas policiais contra os anarquistas e…

A minha avó:

- Ó Rosa, o jantar é para hoje ou para amanhã?

E a Rosa, afogueada, a voltar com a travessa, e o meu pai:

- …e contra a Carbonária…

E a Rosa:

- Ai minha Nossa Senhora, por isso é que ele não me apareceu hoje… Se calhar já está na choça!

E a largar a travessa no meio da mesa.
A Rosa anda muito transtornada desde que descobriu que o Alfredo é da Carbonária.
Ela já andava desconfiada de que ele estava metido nalguma, sempre tão bem informado, sempre com tanta gente à volta dele, “ quando saímos ao domingo, aquilo são primos que nunca mais acabam!, olá primo!, como vai o primo!”
Até ao dia em que o galego da esquina lhe contou que é assim que os membros da Carbonária se tratam uns aos outros.
O meu pai respirou fundo e continuou:

- E é preciso também pensar que temos de ter apoio internacional! Por isso o congresso elegeu uma comissão…

E a minha avó:

- Ó Rosa, então larga-se assim a travessa em cima da mesa?

A Rosa lá veio da cozinha, lavada em lágrimas, o meu pai voltou a respirar fundo e continuou:

- Uma comissão composta pelo Alves da Veiga, pelo Magalhães de Lima e pelo José Relvas…
- Esse fazia bem melhor se ficasse a tratar das vinhas lá em Alpiarça…- resmungou a minha avó.
- …para ir pela Europa pedir apoio para a nossa causa.

O meu pai parou, finalmente.
Por momentos só se ouvia o bater dos talheres nos pratos e a Rosa a fungar.

- A monarquia está a morrer — murmurou o meu pai, fazendo uma festa na mão da minha mãe – Esse aí já vai viver num tempo diferente.

Foi então que eu perguntei:

- Esse… quem?

De repente todos olharam para mim, como se eu tivesse dito alguma inconveniência.
A Rosa correu para a cozinha, (“ai valha-me Deus!”), a minha avó levantou-se e foi para o quarto (“está na hora da novena a Sto. Expedito”), o meu pai descobriu que estava atrasado para uma reunião, e a minha mãe decidiu ir dar uma ajuda a lavar a loiça.
Já quase a sair da sala de jantar voltou-se para mim e disse:

- Vais ter um irmão.

Assim.
Como se me dissesse “os pastéis estavam salgados”, ou “lava os dentes antes de te deitares”
E aqui estou eu, sentado à mesa do jantar, sem me conseguir mexer, ainda sem perceber o que me aconteceu.
A monarquia a morrer, e um irmão a nascer — é muito para quem tem só 14 anos.

«JN de 1 Mai 10