sábado, 30 de janeiro de 2010

ESTOU COM GRIPE…

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910"

DESDE O PRINCÍPIO do mês que há temporais no país inteiro.
Aqui por Lisboa nem se sente tanto, mas no Porto o rio subiu que parecia o mar, com os barcos rabelos a chocarem uns nos outros, e o vapor “Cintra” a naufragar na barra.

No Ribatejo também as coisas estiveram muito feias — e há dias até fui com a minha mãe ao Salão Central, ver um documentário sobre “As Últimas Inundações do Tejo em Santarém”.
Não sei se foi por causa disso, ou pela chuva que não pára de cair, fiquei de cama com gripe, e com uma dor de garganta que não passa, por mais zaragatoas que me façam. Odeio aquele sabor do mercurocromo embebido no algodão, e estou sempre com medo de engolir o pincel, mas a minha avó diz que ainda não se inventou outro remédio.

O meu pai diz que, se isto não passar, vai ter de chamar o Dr. António José, que é quem nos trata a todos, ou então leva¬-me ao consultório, no Largo de Camões.
Mas parece que o Dr. António José ultimamente tem andado muito ocupado — e não é a ver doentes…

- Se houver justiça neste mundo e esta corja for ao ar …
(“Então, Fernando!, olha o menino!”, exclama a minha mãe, que não gosta de o ouvir usar esta linguagem)
- …o Dr. António José ainda há-de ser Presidente da República.
- Vá de retro Satanás! — grita logo a minha avó-- Não me diga que ainda quer mais mortos!
- Eu não quero mortos, senhora minha sogra — responde o meu pai -- mas há alturas na vida em que até a violência se explica… Se olharmos para este país tão atrasado, para esta miséria, para a exploração nas fábricas, para as prisões que se enchem de dirigentes políticos (como o Dr. António José…) enquanto os ladrões andam cá fora a roubar e a assaltar casas, se pensarmos nos desgraçados obrigados a emigrar, se olharmos para todo este povo que não sabe ler, que…
- Chega, meu genro! O senhor não está num comício da Av. Rainha D. Amélia! – diz ela e acaba-se o discurso.

O meu pai diz que ainda não perdeu a esperança de a converter aos ideais republicanos, mas que é preciso ir com calma.
A Rosa, que é a nossa criada e tem uma secreta paixão pelo Dr. António José (e que se recusa a acreditar que ele vai casar dentro de dias) diz que o meu pai está cheio de razão, ela bem sabe o que ouve na Praça da Figueira quando lá vai às compras.

- Inda agora me disseram que a Giraldinha voltou a atacar — diz ela.

A minha mãe está sempre a dizer à Rosa que tenha muito cuidado ao abrir a porta, e só deixe entrar quem ela conhece. Ao que diz o “Século”, a Giraldinha faz-se passar por amiga da família, e depois rouba tudo a que pode deitar a mão.
A Rosa tem um particular ódio à Giraldinha porque, para lá de em tempos ter sido criada, também se chama Rosa.

- Há coisas muito injustas… - suspira ela, antes de se enfiar pela cozinha para tratar da minha canja.

«JN» de 30 Jan 10

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A INFIDELIDADE SINTÉTICA

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Por Catarina Fonseca

DESCULPEM LÁ: qual é a mulher que tem tempo para ser infiel?
Um homem, pronto, depois de um extenuante dia de trabalho tem duas hipóteses: ou é infiel ou faz um blogue, às vezes as duas coisas ao mesmo tempo.
Agora nós?

Vamos ser infiéis quando? Pomos a criança a dormir abraçadinha ao Ruca e dizemos: ”aguenta aí caladinho que a mamã vai ali ser infiel e já volta”?

Programamos o microondas para dali a meia hora e quando a coisa apita dizemos “ai ó Luis Miguel pára lá com isso que tenho de ir servir o jantar”?

Encaixamos a loiça na máquina e vamos lá acima ter um caso com o Paulinho do 5.º esquerdo enquanto as powerballs superdesengordurantes 3-em-1 tentam ferrar os dentes nos restos da feijoada da prataria?
E se fosse só o tempo, inda se dava um jeitinho.
Mas com quem?

Já dá uma trabalheira tão grande encontrar algum espécime a quem valha a pena ser fiel, quanto mais um sobresselente.
Os homens ainda se percebe, porque mulheres com quem vale a pena trair as outras são ao pontapé.
Mas nós?

Vamos ser infiéis com quem, se ainda por cima eles são todos iguais, mais bigode menos bigode?
Ainda por cima, trair em termos dá uma trabalheira tão grande que às tantas começamos a pensar que, em vez de pôr a peruca loira e irmos para o Íbis dizer que nos chamamos Soraia Marlene, valia mais a pena ficar em casa a ver a “Música no Coração”.

Solução: se os homens não valem a pena, aprendi neste número da revista Activa que ainda nos restam os bonecos.
Claro que há o pormenor desagradável de nos tornarem imediatamente psicopatas, mas o que é isso ao pé das suas vantagens: não refilam se mudamos de canal a meio do jogo, nunca nos dizem que a mãezinha deles é que fazia bem pastéis de bacalhau, e não ressonam.
É verdade que não se levantam se o bebé chora, não têm uma conversa por aí além, e não lavam o chão da casa de banho, mas qual é a diferença entre isso e a vida normal?

Uma vez em que estive entre a vida e a morte, uma amiga minha apareceu-me no hospital com o Joca ao ombro. O Joca é um cavalheiro em tamanho natural, com cabeça de esferovite, olhos pintados como os do Tutankamon, bigode de cabelo verdadeiro, ténis de algum sem-abrigo e boné de beisebol.
Ficou sentado na cama ao lado da minha a fulminar quem entrava.
As enfermeiras faziam visitas guiadas para o verem, e enganavam-se a espetar-me a agulha na veia porque os olhos aterrados escorregavam-lhes sempre para o Joca.
Inda esperei que funcionasse como remédio anti-carjacking e andei com ele uns tempos ao meu lado no carro. Mas acabei por tirá-lo, porque só vinham turistas tirar-me fotografias para provar como Portugal estava povoado de cromos e, além disso, ninguém quer “jackar” um calhambeque que já assistiu ao Euro 94.
Hoje o Joca está sentado a um canto, como um avô caquético.
A minha sobrinha mais nova tem um medo dele que se pela. Passa de lado e olha-o de revés, como se esperasse que ele lhe saltasse para a espinha a qualquer momento.
Às vezes diz-me:
“O Joca tem o boné nos olhos”
Com ar reprovador, como se eu não tratasse bem o meu marido.
Pode estar descansada. Não me passa pela cabeça trair o Joca.
Psicopata inda vá; infiel é que não.

(Activa, Setembro 2008)

sábado, 23 de janeiro de 2010

O MEU SONHO ERA VER O COURAÇADO

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910"

A PRIMEIRA COISA que o meu pai me disse, depois de ter lido o que aqui escrevi, foi:

- Nunca te esqueças da data. Sem ela, nunca saberás quando as coisas aconteceram. E temos de saber situar tudo no seu tempo.

Eu pensava que o meu pai não ia ler este diário. Sempre achei que um diário era uma espécie de caixa dos nossos segredos.
Mas ontem ele passou-me para as mãos um livro, e disse:

- Lê isto. Gostava que um dia, ao terminares o teu caderno, ele tivesse uma história parecida com esta.

Nunca tinha visto este livro. Não era de Camilo, nem de Alexandre Herculano, nem de nenhum nome que eu conhecesse. Também não era de Júlio Verne, de quem eu gosto quase tanto como do Texas Jack.

Chama-se “CORAÇÃO”.

Pensei: o meu pai quer que eu seja médico, e já está a preparar-me.
Mas não era nada disso.
É um diário, escrito por um rapaz italiano da minha idade, chamado Henrique. Fala da família, da escola, dos colegas, dos mestres. E aqui, se não fosse o meu pai estar sempre a repetir que um homem não chora, eu teria chorado. Leio: ”lembro-me tanto do meu antigo mestre e do seu sorriso bom”.Eu também me lembro muito do meu antigo mestre, e do colégio na Rua das Pedras Negras, aonde nunca mais voltei.
E pelo meio do que Henrique escreve, há anotações do pai dele. Por isso não vou estranhar que o meu faça o mesmo.

Mas hoje, confesso que não me apetecem grandes leituras : acaba de entrar no Tejo uma esquadra francesa, e o meu sonho era visitar o couraçado “Saint Louis”! Tem quatro canhões grandes e dez mais pequenos.
Parece que o rei vai lá amanhã, e o almirante até lhe oferece um almoço.
O meu pai diz que o rei não faz outra coisa senão viajar, e visitar primos por essa Europa, e passar revista a quartéis, e entrar em barcos, e ir a almoços, e que não é assim que isto lá vai.
Quando o meu pai não a ouve, a minha mãe sai em defesa de D. Manuel:

- Não passa de uma criança…
- Tem 20 anos! Catorze tenho eu e já fico ofendido quando me chamam criança! — digo eu.
- Mas tu não és rei — diz ela.

E com essa é que ela me mata.
A minha mãe diz muitas vezes que a culpa é mais dos que rodeiam os reis do que propriamente dos reis.

- Desculpas…- resmunga o meu pai.

Apesar de tudo, a minha mãe não é talassa furiosa, como a vizinha de baixo, que ainda não retirou as tarjas negras das molduras com as fotografias de D. Carlos e de D. Luis Filipe. A minha mãe apostou comigo uma ida ao Coliseu em como elas as vão retirar daqui a 15 dias, quando fizer dois anos que eles foram mortos. Eu cá apostei que não as vão retirar nunca.
Mas Deus queira que o luto cá em baixo acabe - porque me está mesmo a apetecer ir ver o salto mortal que dizem que o Levy Jenochio vai fazer lá do alto da cúpula!

Razão tem a minha avó quando diz que isto só pode ser o fim do mundo…

«JN» de 23 Jan 10

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

“ EU NÃO SABIA QUEM ERA…”

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910"
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CHAMO-ME José Joaquim, e fiz ontem 14 anos.
O meu pai chamou-me ao escritório e ofereceu-me um livro de capa de couro castanha.
Folheei-o.
Todas as páginas estavam em branco.
- E a história? — perguntei.
Ele sorriu, diante do meu olhar de espanto, e disse:
- A história és tu que a vais escrever. E tenho a certeza de que vai ser uma grande história…
Na capa, em letras douradas, lia-se:

“O MEU DIÁRIO”

O meu pai disse então que eu devia assentar nele tudo o que fosse importante na minha vida.
E depois, com aquele ar grave que ele põe sempre quando me chama ao escritório, abriu um livro e leu:
- “Era eu um rapaz de 14 anos, e não sabia quem era”…
Olhou para mim e acrescentou:
- É assim que Camilo Castelo Branco começa o seu folhetim “Mistérios de Lisboa”.

O meu pai gosta muito dos livros de Camilo Castelo Branco.
Eu cá, para falar verdade, gostar, o que se chama gostar, gosto das aventuras do Texas Jack, que se compram a 60 reis no quiosque da esquina.
Mas não disse nada.
Olhei para o meu pai e esperei.
- Também tu tens 14 anos. Também tu ainda não saberás quem és. Escrever este diário vai ajudar-te.
Abriu a caixa das mortalhas, e começou a enrolar um cigarro--sinal de que a conversa acabara ali.
Agradeci – e agora aqui estou, debruçado sobre o meu diário, tentando escrever o melhor que posso, nesta letra inglesa ,inclinada e certa, que o meu mestre me ensinou no colégio.
Escrevo devagar, cuidadosamente, não apenas para que o aparo não deixe cair nenhum borrão que inutilize a página, mas também porque assim tenho tempo de pôr as ideias em ordem.
“Tudo o que for importante na tua vida” — tinha dito o meu pai.
Mas tenho medo que a palavra “importante” tenha um significado para mim, e outro, muito diferente, para ele.

Claro que me lembro de coisas muito importantes: do dia em que mataram El-Rei e o Príncipe, da confusão por toda a parte, da fuzilaria, dos mortos, da multidão desorientada, da minha mãe só a perguntar “mas por onde andará o teu pai?”, da minha avó aos gritos “é o fim do mundo! eu sempre disse que vinha aí o fim do mundo!”, dos boatos que se ouviam de janela para janela, do quiosque a cerrar os taipais antes da hora, e eu só a pensar “nunca mais vou ler o Texas Jack!”
Hoje tenho muita vergonha de ter pensado nisso. Sobretudo quando me lembro dos mortos todos, dos presos, do meu mestre desaparecido para sempre, do ar cada vez mais sério do meu pai, do medo da minha mãe de cada vez que se ouve um tiro na rua.
O “fim do mundo” — e eu a pensar no Texas Jack.
Só posso encontrar uma desculpa: nessa altura eu tinha 12 anos, ainda não sabia quem era.

O meu pai tem razão: escrever aqui vai ensinar-me a descobrir muita coisa.
Vai ser melhor que os folhetins do Camilo.

«JN» de 16 Jan 10

domingo, 10 de janeiro de 2010

A PRIMEIRA MALA

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UM AMIGO há dias disse-me:
- Nunca percebi por que andas sempre com malas tão pesadas… De resto, é estranho que só vocês é que usam esses alforges, carregadíssimos, como se transportassem o mundo aos ombros… Nós… tudo nos cabe dentro dos bolsos.
Claro que isto daria para um tratado sociológico, as malas das mulheres, as malas dos homens, o mundo aos nossos ombros, etc, etc, mas não é este o lugar nem esta a hora.
De qualquer modo, fiquei a olhar para a minha (para mim) normalíssima carteira— e a pensar nas malas.
Malas mesmo.
Das que se levam quando se vai para longe.
E as coisas que cabem nas nossas malas!...
Objectos, lembranças, recordações de gente que fomos encontrando ao longo desta (mais ou menos) longa viagem que é a nossa vida, colecções que às vezes os outros consideram meio tontas e que vamos fazendo ao longo dos tempos: a minha amiga Margarida, por exemplo, quando vem a Portugal, traz a mala cheia de folhas secas do Outono de Oxford, onde vive, para me dar. E donde quer que eu vá, trago sempre pedras dentro da mala para a minha enorme colecção…
(Quando vim de Timor ia-me dando mal, porque as pedras lindíssimas que eu tinha apanhado nas areias da praia de Liquiçá - eram fósseis, ninguém as podia trazer… Mas pronto, eu trouxe, muito escondidas, e garanto que estão em lugar de honra cá em casa…)
Mas voltando às malas, nunca me esqueço da primeira vez que fiz uma mala.
Uma mala verdadeira.
Uma mala só minha.
Não aquelas malas que são apenas sacos ou mochilas e que os miúdos fazem quando acompanham os pais para férias, e eles berram:
- Vai fazer a tua mala! Se estás à espera que eu a faça, bem podes esperar…
E eles têm de pensar se levam o pijama e mais a escova de dentes, e mais a t-shirt cheia de caveiras, e mais a outra a escorrer sangue de vampiro…
Não.
Nada disso.
Aquela era uma mala a sério.
Uma mala de quem ia partir e não sabia quando voltava.
Nem se voltava.
Havia muito pouca coisa realmente importante que eu quisesse levar.
A vida, e a casa, e as pessoas que eu ia deixar não me tinham dado motivos para saudades, e eu não queria levar comigo nada que não fosse realmente essencial.
Sobretudo não queria nada que as recordasse — como se eu quisesse renascer, num lugar diferente, entre gente diferente.
Claro, as coisas do dia a dia, o que se veste, o que se calça, mas essas coisas, ainda hoje, não ocupam muito espaço nas minhas malas.
Eu tinha nessa altura pouco mais de 20 anos.
Quer dizer: estávamos, praticamente, na pré-história…
Era um tempo em que não havia telemóveis, nem iPOD, nem MP3, nem computador, nem sequer ainda — pasmem bem! — CD´s… Os discos eram uma coisa redonda de vinil, era preciso maquinetas grandes para os tocar.
Hoje leva-se no bolso toda a música que se quiser.
Hoje teclamos uns algarismos e falamos com o mundo inteiro.
Naquele tempo, quando se viajava, ficava-se mesmo separado do mundo.
Por isso eu queria levar comigo, dentro da mala, qualquer coisa que me permitisse matar as saudades que acabariam por chegar.
Qualquer coisa que levasse consigo um bocadinho do meu país.
E enfiei na mala um livro de poesia do Herberto Hélder.
“A Colher na Boca”.
Era um volume de capa branca, apenas com as letras do título ao meio — ou assim eu o recordo, à distância destes anos todos. Não me lembro, confesso, do nome da editora.
E posso dizer que aqueles poemas foram a minha salvação.
Aí eu entendi como a língua cria laços que muito dificilmente se apagam.
E como as palavras nos prendem, e nos ajudam a sobreviver.
Sozinha, no meu minúsculo quarto da Rue Cujas, em Paris, nem sempre os dias eram fáceis.
As chamadas de telefone eram caras, tinha de ir ao correio para as fazer — e convinha marcar com antecedência, dava o número e o nome da pessoa com quem queria falar, pois , se não o fizesse, a pessoa podia não estar em casa, e gastava-se uma chamada em vão.
Era mesmo, mesmo a pré-história…
Eu, que nunca fui de decorar muita coisa, (a não ser o nome das serras, e dos rios, e das linhas de caminho de ferro que na escola nos obrigavam a recitar, com mais unção do que se se tratasse do Pai Nosso…) sabia naquela altura – e ainda sei hoje - muitas estrofes de cor.
Lembro-me de repetir
“toda a juventude é vingativa
deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura”
Ou então
“não sei como dizer-te
que a minha voz te procura”

Assim, versos desgarrados, porque os poemas eram muito longos, falavam muito de mulheres, e de água, e de sangue, e de peixes, e eu lia-os e relia-os porque aquela era a minha língua, e enquanto eu a pudesse falar, o país estava dentro de mim e não me abandonava.
Lembro-me que nos dias em que eu chegava ao quarto sem ter pronunciado uma única palavra de português naquelas horas todas — eu corria a abrir o livro, e a ler o primeiro poema que aparecia, em voz alta, sempre em voz alta — para ter a ilusão de companhia, e para me sentir em território meu.
Só nessa altura entendi como se podia ter dolorosas saudades de falar a nossa língua.
Só nessa altura percebi o significado verdadeiro de “língua-mãe”.
Depois o tempo passou, a vida deu muitas voltas, e eu fiz a mala e regressei.
Mas não trouxe o livro: alguém, que ia lá ficar, precisava dele muito mais do que eu.

in "AUDÁCIA" Janeiro 2010

O TRICOT

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ABRIU A JANELA na manhã daquele domingo de Janeiro, suspirou fundo e murmurou:
“Desta vez é que vai ser”
A filha tinha acabado de se arranjar, pronta para o ritual dos almoços de domingo, quando ela lhe descobriu um piercing na língua e uma tatuagem a meio do pescoço.
Engoliu em seco e repetiu:
“Desta vez é que vai ser”
Desde miúda que sente sempre que os primeiros dias de Janeiro são mágicos, porque tudo pode acontecer.
A irmã ria-se dela.
A irmã ria de tudo, parecia viver noutro mundo.
Mesmo as coisas difíceis de suportar (os ralhos do pai, agora a morte da mãe, a deixá-la sozinha; os namorados que apareciam e desapareciam da sua vida) era como se não lhe tocassem: sentava-se no sofá, e tricotava o dia inteiro.
Desde muito nova que era assim.
A mãe ralhava, o pai ralhava, os namorados ralhavam — e ela corria a enfiar-se no sofá a fazer malha.
Ela fora sempre muito diferente da irmã, se gritavam ela gritava também, respondia sempre, não se ficava.
Mas ainda continuava a pensar em Janeiro como num tempo de promessas cumpridas, de novos planos postos em prática.
Por isso logo nos primeiros dias do ano limpava a casa com um vigor renovado, deitava fora baldes e baldes de lixo acumulado, respirava outro ar.
Mas havia rituais a que não podia fugir.
Quando há dois meses a mãe morrera, pensou que o ritual dos almoços de domingo morrera com ela. Os silenciosos almoços de domingo que acabavam, inevitavelmente, com o marido aos berros assim que entravam em casa, e a filha a berrar ainda mais.
Mas logo a irmã avisara que tudo ia ser como dantes, e que ninguém se lembrasse de faltar.
A irmã tinha uma maneira subtil de os fazer rebentar de remorsos, quando murmurava, entre dois sorrisos, “ a mãe não ia gostar nada…”
Então lá iam todos, cada um sonhando estar noutro lugar, com outras pessoas, falando de outras coisas.
À uma hora em ponto a terrina da sopa vinha para a mesa e o silêncio era geral.
“À mesa não se conversa”, tinha sido sempre a filosofia dos pais. Por isso os silenciosos almoços de domingo eram um suplício, que só terminava quando a irmã se levantava da mesa e começava a tricotar — e cada um podia ir à sua vida.
“Que seca…”murmurava a filha, vestida de preto dos pés à cabeça, a viver o seu período gótico.
(No primeiro domingo a seguir ao enterro, a irmã olhara para a miúda e ficara imenso tempo abraçada a ela a fazer-lhe festas no emaranhado do cabelo, pensando que o preto era a expressão do seu desgosto pela morte da avó, e ninguém teve coragem de a desiludir)
“Estou a ficar sem pachorra nenhuma para estas fantochadas”, murmurava o marido, desfazendo finalmente o nó da gravata.
“Tu nunca tiveste pachorra para nada…”, respondia ela.
Era o rastilho. E logo começava a zaragata, ela a dizer coisas que até nem queria, ele a dizer coisas que até nem pensava, a filha a ameaçar tipo bazar dali rapidamente, se aquela cena tipo não acabasse.
Hoje lá vão todos de novo, em romaria.
E ela tem a certeza de que o regresso a casa vai ser complicado, porque o marido ainda não descobriu o piercing nem a tatuagem da miúda e, quando descobrir, a discussão vai ser das valentes. Discussão em casa, evidentemente, porque a irmã não permite coisas dessas lá em casa, “a mãe não ia gostar nada”.
Suspira fundo mais uma vez, antes de fechar a janela.
“Desta vez é que vai ser…”, murmura.
Desta vez é que se vai encher de coragem e pedir à irmã que a ensine a fazer malha.

in "ACTIVA" Janeiro 2010

O COPO DE VIDRO AZUL

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AINDA NEM ESTAVA em mim, palavra! , e o pior era as pessoas pensarem que eu devia ter enlouquecido.
“Mas o que é que lhe passou pela cabeça para fazer um chinfrim destes?”— eu olhava para a cara da Laurinda e estava a frase lá estampada.
Mas olhava sobretudo para a cara dele, sobrolho franzido e exclamando “era só um traste velho!”
O copo de vidro azul em cacos.
O copo de vidro azul, onde ninguém a não ser eu mexia – em cacos.
Perguntei-lhe por que é que tinha mexido no copo e ele riu e disse que eu só podia estar maluca, que aquele copo devia ser a coisa mais velha que havia lá em casa, e além disso era o que estava à mão, qual o mal ?
Pronto, tinha-lhe escorregado dos dedos e tinha-se partido, mas em qualquer loja dos chineses havia montes de copos iguais àquele, com cinco euros eu comprava para aí meia dúzia. E de certeza melhores.
Olhei para ele e não acreditei.
O meu homem, o homem pelo qual há 30 anos eu tinha fugido de casa, o homem com quem partilhara as melhores horas da minha vida, o homem que era meu marido e me devia conhecer por dentro e por fora — o meu homem olhava para aquele copo e dizia “era um traste!”
O copo de vidro azul tinha 30 anos.
É raro um copo de vidro barato durar tanto—mas eu tinha-o colocado numa prateleira alta, onde ninguém facilmente chegava.
Era um copo para se olhar para ele, não para se beber nele. E ia durar—pensava eu—para sempre.
Apanhei os bocados de vidro enquanto aos meus ouvidos chegava, lá de muito, muito longe, a voz dele num dia em que olhara para mim e perguntara:
-E agora?
Tínhamos rido muito, na despreocupação dos 20 anos, “alguma coisa se há-de arranjar, trabalhamos ambos, à fome não morremos”
“A minha casa é um cubículo”, disse ele, e eu respondi que era magra, em qualquer lado me encaixava, e rimos outra vez, e outra vez ele disse “nem sequer há pratos ou copos para dois”, e mais uma gargalhada, “lojas é que não faltam”.
E no dia seguinte ele chegou a casa e disse “já não falta tudo”, e entregou-me um embrulho atamancado em papel de jornal, daquele que ainda sujava muito as mãos.
“Foi o que se pôde arranjar, “ disse, “o dinheiro é pouco”.
Era um copo barato de vidro azul.
A primeira prenda, no primeiro dia de uma vida a dois.
O copo de vidro azul — trinta anos depois, em cacos no chão da cozinha.
Estou a pensar nisso tudo quando a Laurinda me avisa que vieram entregar uma encomenda para mim, e que é preciso assinar um papel.
Digo-lhe que deve ser engano, não estou à espera de encomenda nenhuma, mas ela quase me empurra até à entrada, e diz que o homem está à porta, com um caixote que diz “frágil” e com um envelope com o meu nome escrito e a morada certa.
Faço um rabisco qualquer e abro o envelope:
“Ao menos estes são de cristal…Espero que cheguem para pagar essa porcaria que parti…”
Durante muito tempo fiquei a olhar para o caixote, sem o abrir.
Durante muito tempo fiquei a pensar no que verdadeiramente se tinha partido para sempre no exacto momento em que se partira o copo de vidro azul.
E chorei a tarde inteira.

in "ACTIVA" Dezembro 2009

QUINZE ANOS

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SENTA-SE NO CADEIRÃO da sala e estende as pernas para que o sol que vem da janela as cubra.
Está na praia, tem 15 anos e espera que chegue o homem da vida dela, que também tem 15 anos, e passa o verão de calções e chinelas, e ri muito, e promete que nunca há-de pôr uma gravata, e há-de amá-la até ao fim da vida, e hão-de ter muitos filhos, e ao jantar há-de vir para a mesa uma grande terrina de sopa, e ela há-de distribuí-la por todos, sorridente e a cheirar a alfazema.
Tem 15 anos, e a certeza absoluta de que há-de ter sempre 15 anos, e que nunca há-de ser igual à mãe, que cheira a óleo de fritar batatas e anda sempre de avental.
Tem 15 anos, está de férias e acabou de ler “Brigitte Solteira, Brigitte Casada”, onde as mulheres amam muito os maridos, e os maridos amam muito as mulheres, e os pais amam muito os filhos, e os filhos amam muito os pais, e os amigos amam muito os amigos, e todos juntos amam muito Deus e a pátria.
E ela sonha em ter uma vida assim, sobretudo quando o pai chega a casa e grita com a mãe, e a mãe grita com o pai, e depois chamam-na e fazem dela intermediária de brigas que ela não conhece, “ó Teresa, diz aí à tua mãe”, “ó Teresa diz aí ao teu pai” e é então que ela jura que nunca há-de ser assim.
As pessoas não entendem por que é que os pais não se separam, sempre em brigas, mas quando ouve isso a mãe põe ar grave e diz que, na família dela, casamento é para sempre.
Mas agora ela não quer pensar nisso, agora quer apenas ter 15 anos, apanhar todo o sol do mundo, e sonhar com o dia em que o homem da vida dela, que também nunca há-de ter mais de 15 anos, entre em casa a cheirar a “Cuir de Russie”, que ela não sabe o que é mas que no livro é aquilo a que cheira Olivier, o namorado da Brigitte, que há-de ser seu marido e amá-la (e também aos filhos, aos amigos, a Deus e à Pátria) até à morte.
E jura, com toda a força, que nunca há-se ser igual à mãe, que há-de ter sempre todo o tempo do mundo para os filhos, e há-de compreendê-los, e eles vão crescer e amá-la sempre muito, como a Brigitte e o Olivier amam as respectivas mães, e todos os domingos virão a sua casa almoçar, e a terrina com a sopa há-de estar no meio da mesa, e ela a cheirar a alfazema
Estende as pernas e repete, sorrindo, “ tenho 15 anos, hei-de ter sempre 15 anos, e nunca serei igual a ela, nunca, nunca”
De repente estremece com o som da porta da rua que se abre.
“Fartei-me de ligar mas não atendeste, por isso tive de cá vir”.
Ela olha para o telemóvel que regista 5 chamadas não atendidas. É o que dá sonhar ao sol.
“O meu advogado quer saber quando pode falar com o teu”, diz ele.
“Quando quiser”, diz ela e, de repente, sorri porque, com aquele calor, ele vem de blazer e gravata, deve ter tido uma reunião importante.
“Disse alguma graça?”, pergunta ele, mal-humorado, num tom que o Olivier nunca usaria
Ela encolhe os ombros e não responde
Ele larga as chaves em cima da mesa, “aproveito para as devolver, não faz sentido nenhum ficar com elas”, e sai.
Ela volta a estender as pernas para apanhar o sol que ainda resta.
Tem 15 anos, há-de ter sempre, sempre 15 anos.
O mal é que o homem da vida dela afinal andou sempre mascarado, e já devia ter nascido com 50.
E, evidentemente, nunca leu “Brigitte Solteira, Brigitte Casada”.

in "ACTIVA" Setembro 2009

O CHEIRO DA ÁGUA

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EVA DETESTA o verão.
Só por isso aceitou o convite do filho para passar com eles o mês de Agosto. A casa tem paredes grossas que protegem do calor, e às vezes corre uma brisa no pátio.
Mas hoje nem isso.
“Quando era pequena, Agosto cheirava a água quente”, diz, e todos riem, e a neta exclama “ó avó, mas a água não tem cheiro”, e o neto, que é o génio da família, começa a papaguear o que lhe ensinaram na escola, “a água é inodora, incolor” e mais outra coisa de que ele já não se lembra.
E ela sorri porque eles são todos muito novos e ainda não viveram tempo suficiente para saberem que tudo, absolutamente tudo, tem cheiro. Sobretudo a água quente.
Normalmente todos se riem sempre que ela fala de quando era nova, e de como só reconhece as coisas pelo cheiro, e logo o neto volta a atacar, porque também já lhe ensinaram na escola que a isso se chama faro, e só os cães é que têm, e todos voltam a rir e a gabar a sabedoria da criança.
Não tem posição na cadeira, a lona cola-se-lhe às pernas, precisa urgentemente de vento e aspirina.
E mais uma vez a cabeça lhe rebenta com lembranças de um tempo que ela prometeu apagar da sua vida - o vapor da água espalhando-se pela casa inteira, escorrendo das paredes, abafando o ar, misturando-se na voz da tia, insistindo em que o banho devia ser de imersão, senão não era banho não era nada.
O cheiro da água a cair na banheira quando elas voltavam da praia é a recordação mais forte dos verões da sua infância – e a velha Emília a queixar-se sempre das correrias , das gritarias , “ai minha senhora, as meninas cada vez dão mais trabalho, e eu já estou velha para aguentar isto!”
O banho, de água tão quente que às vezes a pele ardia por causa do sal. Primeiro ela, a mais velha; depois as irmãs – e sempre a presença da tia, que superintendia tudo, como um general a dar ordens aos seus homens.
Em Agosto, a mãe e o pai viajavam. O calor atacava, a tia instalava-se lá em casa--e, durante um mês, era como se vivessem numa casa desconhecida.
“Onde é que já se viu pôr os remédios na cozinha!”, berrava a tia, diante das aspirinas e dos benurons e dos xaropes espalhados pelas prateleiras do armário, “isto é um perigo! “, exclamava, enquanto levava tudo para o armário da casa de banho, cheio de champôs e lacas e sabonetes que, por sua vez, por suas mãos passavam para o roupeiro do corredor, donde era retirada a loiça dos domingos (“loiça num roupeiro, oh meu Deus!”) que iria misturar-se no armário da casa de jantar com a que servia nos dias de semana.
Emília não dizia nada, não se desobedece à tia dos patrões, mas abanava a cabeça e suspirava fundo, porque sabia que ia sobrar para ela: assim que eles voltassem, todos os objectos regressavam aos lugares habituais, donde o mês de Agosto os exilara, como se também eles tivessem direito a férias.
Eva precisa mesmo de aspirina.
A nora diz-lhe que há uma caixa no armário da cozinha e, de repente, ela vai mesmo a exclamar “mas onde é que já se viu…”, mas trava a tempo, o calor está a dar-lhe cabo da cabeça, sacode todos esses pensamentos para muito, muito longe, com medo de um dia destes, sem querer, começar a chamar por Emília, ou a falar com voz de general a dar ordens aos seus homens.

in "ACTIVA" Agosto 2009

CONTA CORRENTE

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ANA OLHA PARA O ÉCRAN e a imagem dele enche a casa.
Quer desviar os olhos mas não consegue.
Pega no comando para desligar, mas é como se a mão estivesse presa e ela no meio de uma daquelas séries de bruxas e génios do mal que abundam na programação.
Nem ouve as perguntas que lhe fazem. Vê-o só a ele, o cheiro a colónia que deve pairar naquele estúdio, a pose decerto encenada em casa, a voz que os muitos maços de cigarros ao longo dos anos foram enrouquecendo.
A jornalista sorri, reverente, é sempre bom mostrar respeito diante de uma figura pública, mesmo que o programa seja de futilidades e a figura pública, que sempre se recusou falar da sua vida privada, agora olhe para as câmaras numa operação de charme que Ana não entende.
E depois passam uma reportagem feita na casa nova, a casa escolhida pela Bé, como ele não se cansa de repetir, e a Bé a aparecer ao fundo do corredor, e ele pendurando-se no braço dela, e a mostrar a mesa onde escreve os livros,” todos dedicados à Bé, evidentemente”, os quadros da parede, “escolhidos pela Bé, que percebe imenso de pintura”, a música que ouve, “em conjunto com a Bé, que está muito mais a par destas coisas ”, o cão que lhe salta para o colo, “trazido pela Bé, que o encontrou à nossa porta”.
Ana sorri.
Ele sempre fora alérgico a cães.
Uma tarde um rafeiro atravessara-se no seu caminho—e ele esteve a espirrar a tarde inteira.
Entretanto a reportagem acabara e estava-se de novo no estúdio. “Toda a minha vida esperei pela Bé”, murmura ele.
E Ana não percebe como um homem tão inteligente pode fazer figuras tão tristes diante de milhares de pessoas, e ouve-o dizer que só com a Bé encontrou um sentido para a vida, que antes da Bé nada teve importância.
-Devo-lhe tudo, absolutamente tudo - repete ele.
É então que Ana tem uma fúria.
Não pelo facto de ele ter apagado 25 anos da sua vida; não pelo facto de a Bé ter idade para ser sua neta e ele se ter casado com ela de papel passado e tudo, coisa que nunca julgou importante fazer com ela; não por ele ter saído de casa uma tarde sem a avisar de que não iria voltar. Por nada disso.
Aquele “devo-lhe tudo” é que a fez rebentar.
Pega num papel e numa esferográfica (ele deve ter levado a máquina de calcular, há muito tempo ela não a encontra), e enquanto ele se desfaz em sorrisos e baboseiras diante das câmaras, Ana vai somando parcelas e mais parcelas, de rendas de casa, de água, gás, luz, electricidade, eTv Cabo, das compras ao fim do mês, dos cinemas ao sábado, das resmas de papel e depois do portátil e da impressora e dos tinteiros, e das termas nas férias por causa das alergias, e da assinatura do “Magazine Littéraire”-- porque durante anos ele só viveu para a sua escrita, mas a fama e o dinheiro tardavam a chegar, e foi Ana que andou com a vida para a frente.
E as parcelas vão surgindo de todos os recantos da memória, e Ana vai somando tudo, e multiplicando tudo por muitos meses, e por muitos anos, e começa a rir, a fazer contas e a rir, com aquele riso que só a muita raiva dá.
Quando as contas ficarem prontas, Ana vai mandar tudo para casa dele.
Para que ele veja que afinal nem tudo deve à Bé.
Pelo menos alguma coisa ainda lhe deve a ela.

in "ACTIVA" Julho 2009

TREZE TERÇAS-FEIRAS

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SE NÃO FOSSE a insistência de Cláudia, nunca Helena se teria metido naquela aventura das terças-feiras.
Mas Cláudia garantira que o santo, depois daquele sacrifício, nunca falhava.
Ao princípio até se divertiu, Helena gostava de ir à Baixa, de meter o nariz naquelas lojas de balcão de madeira, todas a cheirarem a sabonete Nally e a benzovac, que era aquilo com que se tiravam as nódoas em casa da avó.
- Vais ver como resulta. É tiro e queda — repetia Cláudia.
Cláudia era muito devota de Santo António e, embora já tivesse desistido do casamento (“já não tenho paciência para aturar homens”) não desistia de interceder pelas amigas, assegurando que a novena, feita em 13 terças-feiras seguidas, era remédio infalível. Quer dizer: era marido garantido.
Então, todas as terças feiras Helena saia de casa e encontrava-se com Cláudia numa pastelaria que servia croissants espectaculares.
- Será que não estamos a cometer o pecado da gula? – perguntou na primeira terça feira.
Cláudia riu e disse que não era preciso exagerar, já não se estava nos jejuns da Idade Média.
Depois de engolidas as últimas migalhas, e de Cláudia acenar a um senhor de fato escuro sentado junto à janela (“é um verdadeiro cavalheiro, há dias eu não tinha troco e pagou-me a bica”) entravam na Igreja e faziam a novena.
Nas primeiras terças-feiras Helena ainda achou graça, sobretudo à convicção de Cláudia:
- Podes ter a certeza, depois destas treze semanas em honra de Santo António, o homem da tua vida bate-te à porta.
Mas depois chegou a uma altura em que já começou a baralhar as semanas, teriam passado sete?, ou seriam já dez?, ou não passariam de cinco? Devia ter tomado nota, mas fiara-se em Cláudia e agora tem a impressão de que já há muito ultrapassou o tempo previsto, e que Cláudia está a fazer render o peixe, que é como quem diz, o santo.
Mas Cláudia não desiste: as terças feiras são sagradas, os croissants na pastelaria, o senhor de fato castanho a sorrir, a pequena igreja onde o santo morava, o responso que tinha de ser repetido para que tudo resultasse, e Helena, mesmo meio baralhada, a pôr naquelas palavras toda a fé que tinha e sobretudo a que não tinha.
E agora está ali na pastelaria, porque Cláudia lhe pediu que chegasse mais cedo, tinha uma coisa para lhe contar.
Mas pelos vistos Cláudia atrasou-se, e se calhar vão chegar tarde à novena, e se calhar depois o efeito perde-se. Para dizer a verdade, ao fim destas semanas todas Helena ainda não sentiu efeito nenhum, mas Cláudia garante que o santo não falha.
Está a acabar o croissant quando Cláudia entra, afogueada.
-Hoje não dá para ir contigo!
Helena nem acredita. Cláudia vai faltar à novena? Vai trair o santo? Ou será que as treze semanas já acabaram? E, se acabaram, que é do marido que lhe prometeram, prontinho a usar?
-O Henrique quer ir comigo ver uma casa e…
Helena não sabe quem é o Henrique, Helena não está a perceber nada, até que, olhando pela janela, descobre, no passeio da rua, o senhor de fato castanho, acenando-lhe.
-Olha, aconteceu…- murmurou Cláudia, rindo--Ainda nem percebi como…Depois conto com mais pormenores.
Cláudia sai, o senhor de fato castanho dá-lhe o braço (“é um verdadeiro cavalheiro”) e volta a acenar a Helena.
Que fica com ar de parva a olhar para a porta, a saia cheia de migalhas de croissant, e a estúpida sensação de ter entrado na anedota errada.

in "ACTIVA" Junho de 2009

A VIDA NO SEU AUGE

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- SE TU soubesses o que é a minha vida…
Abraça-me e tira o casaco, porque faz muito calor, e eu procuro abafar uma vontade irresistível de rir, até porque sei que nunca nos devemos rir de conversas que começam desta maneira — e sobretudo porque também sei que ela tem razão…
- Se tu soubesses como é bom estar aqui sozinha contigo, e eles todos no futebol!
Sozinha, enfim, era uma força de expressão, só com enorme boa vontade (ou num qualquer exercício literário…) é que uma pessoa se pode considerar sozinha num sábado à tarde no Colombo.
Ela tinha-os largado no estádio e, com um toque de telemóvel, conseguira comover-me, e arrastar-me da tranquilidade de minha casa para um local de que não sou, confesso, grande frequentadora.
E agora ali estamos as duas.
- Largaste-os no estádio? - admiro-me.
- Claro. Não suporto futebol, mas se isso os faz felizes a eles, ainda bem. È da maneira que tenho uns minutos de sossego…
E lá me vai explicando o que são as correrias das suas manhãs, levantar às sete, acordar toda a gente, tornar a acordar toda a gente porque há sempre um que resiste a sair da cama, e ela sabe que basta um atraso de cinco minutos para a manhã ficar toda engatada .E depois o pequeno-almoço.
E depois as mochilas, que nunca estão prontas.
E depois os casacos, que nunca estão no sítio.
E depois os sapatos, cada um para seu lado.
Sorrio e, em toda a minha inocência, proponho apanharmos o metro, são só três estações até minha casa, que tal passarmos uma tarde tranquila, na conversa, víamos um filme, o jogo ainda agora começou, temos mais que tempo, e…
Ela nem me deixa continuar. Sacode a cabeleira loira e exclama:

- Para casa? Estás a gozar comigo, com certeza... Vamos mas é para as compras!”
E arrasta-me vertiginosamente pelo meio daqueles corredores circulares por onde me perco sempre mas ela não, e vai falando em marcas que eu não conheço mas ela sim.
E entra e escolhe calças e tops e t-shirts e blusões, e enfia-se pelos gabinetes de provas das lojas, e despe-se e veste-se, e torna a despir-se e torna a vestir-se, e chama-me para uma opinião, às vezes só para me dizer “olha como fico gira!” — porque, no meio daquela vertigem toda, ela não perde a cabeça, sabe muito bem gerir o seu dinheiro, não faz compras inúteis ou extravagantes, mesmo que os saldos a possam provocar.
- O que eu quero é experimentar a roupa! - diz-me - adoro entrar nos gabinetes para experimentar roupa!
E depois da roupa é a vez das perfumarias, e abre todos os “testers”, e cheira, e chocalha, aqui não dá para provar mais do que isso.
De repente abranda.
Fico aliviada, porque, para dizer a verdade, já sinto a cabeça ligeiramente a andar à roda, deve ser daqueles corredores concêntricos, e ela também parece cansada.
- Estou cheia de fome! — exclama - as compras fazem-me sempre muita fome!
Enquanto eu estou a pensar onde é que se pode ir lanchar, já ela me arrasta pelas escadas rolantes, “anda que eu sei um sítio óptimo!” , e em menos de um minuto estamos abancadas a uma mesa.
Eu - com o meu café curto.
Ela — com três enormes bolas de gelado, de nomes estranhíssimos, que tentam equilibrar-se num cone gigantesco.
Atira-se depois para uma cadeira ao meu lado, olha para a cadeira em frente e suspira:
- Três sacos de compras e um gelado…A isto chamo eu a vida no seu auge!
Tenho muita vontade de rir, confesso, mas limito-me a olhar para ela.
Acho que nunca na minha vida vi tamanha expressão de bem-aventurança na cara de uma miúda de 13 anos.

In “ACTIVA”, Março 2009

VINTE AMIGOS

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FOI AO CHEGAR A CASA que encontrou os bilhetes para o concerto.
Sempre a mesma coisa: compra dois, na esperança de poder cravar alguém para ir com ela, mas acaba sempre por ir sozinha, e não tem graça nenhuma ouvir música sozinha, sem poder bichanar para o lado “acho que o fagote está meio desafinado“, ou “ a tuba já precisava de ser limpa”…
Abre o computador, para ver se há correio — mas fica logo maldisposta, sempre a mesma coisa, “se não reencaminhar isto dentro de 15 segundos…”
Suspira fundo e carrega no botão para apagar aquela série de imagens que a ameaçam de terríveis fatalidades se ela não as passar para pelo menos vinte amigos.
Se não o fizer — avisam-na — há-de acontecer-lhe o mesmo que ao presidente da Argentina, a quem morreu um filho por ter quebrado a corrente.
Ela murmura “que tolice”, mas não é isso que a aborrece, até porque ela não tem filho nenhum, e tem a vaga ideia de que, na Argentina, não há UM presidente mas UMA presidente, e é suficientemente racional para saber que, se não reenviar aquela treta, não lhe vai acontecer desgraça de maior, nem ao filho que não tem, nem ao presidente da Argentina.
O que verdadeiramente a deprime, o que a põe virada do avesso, é aquela lenga-lenga do “reenviar a 20 amigos”.
Mas alguém tem 20 amigos?
Amigos mesmo, daqueles a quem se pode ligar às cinco da manhã e eles, assim que atendem, perguntam logo “precisas que vá aí?”, já com o braço a agarrar o capacete da mota?
Uma vez, ligou num fim de semana a um namorado que acabara de a deixar por outra dez anos mais velha e, apesar da voz anasalada que fabricou, e do rol de doenças que inventou para o encher de remorsos, o mais que conseguiu ouvir-lhe foi: “toma uma aspirina que eu na 2ª, se puder, telefono”.
Vinte amigos—quando a ela lhe bastava apenas um, que a acompanhasse ao CCB.
Procura na agenda, podia ser que nos últimos dias a lista tivesse aumentado sem ela ter dado por isso. Mas, do A ao Z (incluindo aquelas letras que dantes eram ilegítimas na nossa língua mas que o acordo ortográfico, como bom pai, decidira perfilhar) os resultados não foram brilhantes.
Começa a chegar-lhe a vontade de ligar para o Sr.Valdemar, que é o técnico de computadores que a salva das desgraças electrónicas, ou para o menino do call-center que lhe atura as reclamações da netcabo, ou para o atendimento da CP, “muito bom dia, fala Pedro, em que posso ajudá-la?”, e explicar que não quer ajuda nenhuma, quer só saber onde encontrar um amigo que a ature, um único, nada daquele exagero dos 20, que a corrente dos azares exige.
Toca o telefone e reconhece logo a voz aguda da mãe, a contar as habituais desgraças, a osteoporose da avó Carlota, a anemia da prima Albertina, ali não há possibilidade de fugir, nem mesmo arranjando 20 amigos para travar os perigos, e é então que de repente se ouve a dizer-lhe “quer vir comigo a um concerto?”, e a mãe espantada, porque nunca ela se lembrou de a convidar fosse para que fosse, e ela já arrependida, porque vai ser a noite inteira a ouvir recriminações, e relatos de zangas, e queixas da família, mas antes isso que ficar sentada sozinha, e será a sua boa acção de princípio de ano.
Combina a hora a que a vai buscar, e desliga o telefone. E dá consigo a olhar para o espelho e a sorrir, com a sensação estúpida de ter salvo o filho do Presidente da Argentina.

in "ACTIVA" Janeiro 2009

O QUE SE LEVA DESTA VIDA

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QUANDO NO AR COMEÇA a cheirar a Carnaval, lembro-me sempre do tio Guilherme.
Lá em casa ninguém podia falar nele.
A minha mãe tinha esse método asséptico e eficaz de matar quem a aborrecia. Não se pronunciava o nome e pronto.
Há muitos anos que não vejo o tio Guilherme, coitadinho, que sempre foi um paz de alma. A vida dá muitas voltas e vamos esquecendo as pessoas.
Mas no Carnaval lembro-me sempre dele.
- O meu irmão Guilherme morreu.
Ainda oiço a voz da minha mãe a anunciá-lo, depois de um sábado de Carnaval, exactamente no mesmo tom com que em tempos anteriores anunciara
- A prima Henriqueta morreu
ou
- A vizinha Idalina morreu
E por aí fora.
Embora miúdos, já distinguíamos que, para a minha mãe, havia mortos de primeira (com direito a flores nas jarras diante do retrato) e mortos de segunda (com direito apenas ao silêncio e a olímpicos olhares de desprezo se, por um acaso do destino, se tropeçasse neles no meio da rua)
A tia Vera, por exemplo.
Depois de muitos anos de “morta”, começámos a poder nomeá-la à vontade a partir do momento em que a minha mãe viu o seu retrato na necrologia do jornal.
- Coitada, nem era má pessoa… - murmurou.
Estando efectivamente morta, a tia Vera tinha ressuscitado para a minha mãe.
E não havia gente que a minha mãe mais amasse do que os mortos que só ressuscitavam porque ela deixava.
Mas naquele distante sábado de Carnaval, as coisas começaram logo a correr mal, quando o tio Guilherme se atrasou a chegar ao assalto.
Os “assaltos de Carnaval” em casa de amigos, conhecidos, conhecidos-de-amigos-ou-nem-isso eram a única diversão da época. As portas das casas ficavam abertas pela madrugada fora e entrava quem quisesse.
Mas é claro que tinha de haver alguém, ainda que discretamente, a ter olho no pessoal, e esse era o trabalho do tio Guilherme.
Animava os mascarados, ordenava as pessoas em fila como num comboio, e lá iam percorrendo as divisões da casa, bamboleando-se todos ao ritmo das marchas brasileiras
“o que se leva desta vida/
é o que se come, o que se bebe/
e o que se brinca, ai,ai…”
Mas naquele sábado de Carnaval o tio Guilherme não só chegara atrasado como, ainda por cima, levava a Aida a tiracolo.
Crime sem perdão: com a falta de homens que já então havia, todas as casas que abriam as suas portas para um assalto tinham por dever garantir que nenhuma menina de boas famílias (regra geral cheias de dinheiro e cheias de pelos na cara) ficaria sem par.
Atrelado à namorada, o tio Guilherme era uma baixa de peso.
Mas o pior veio no fim da festa.
Com os vapores do álcool, os ritmos brasileiros, as voltinhas pelas salas, o tio Guilherme baralhou-se e, em vez de sair com a Aida, saiu com a Vera, que estava prometida ao primo Ricardo, emigrado em França.
Nunca mais soubemos dele até ao dia em que recebemos um cartão a anunciar o casamento.
Foi nesse dia que ele morreu para a minha mãe.
E a tia Vera também.
Só que essa teve a sorte de morrer mesmo, o que, para a minha mãe equivalia a ressuscitar e a ganhar direito ao nome.
Acho que há dias vi o tio Guilherme a sair de um café. Velho e a arrastar os pés, mas sobrevivente da minha mãe e da tia Vera.
E quase jurava que o tinha ouvido cantar “o que se leva desta vida, é o que se come, é o que se bebe, é o que se brinca, ai,ai!”
Ai, ai.

in "ACTIVA" Fevereiro 2009

A PRENDA DE NATAL

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DESEMBRULHA O PRESENTE que o marido lhe deu e fica muito tempo a olhar para ele, sem saber se há-de rir se há-de chorar.
- Que raio de prenda - murmura a filha — Um papel velho numa moldura…
Ela não responde.
Dias antes tinha encontrado aquele papel, com os nomes escritos todos em maiúsculas, seguidos do nome de um objecto, livro, disco, camisola, cachecol, etc, e, no fim de tudo, Madrinha, só isso, e ela a querer desviar os olhos daquele papel e a não conseguir, e de repente a voz da mãe há 40 anos gritando “claro, esqueceste-te da Madrinha, pois olha que sem ela não eras nada, ouviste? Nada! Mas tu tens sempre muito em que pensar, já para não falar nas asneiras que andas a fazer, que eu bem sei, julgas que sou burra mas não sou!”
E ela sentindo-se a sufocar naquela casa, com as paredes cheias de quadros de gôndolas e açudes e meninos de lágrima a escorrer pela cara, onde paira a sombra da Madrinha, onde tudo se faz com o dinheiro da Madrinha, porque a Madrinha é que lhes destina a vida. E agora era tempo de Natal, e ela tinha comprado prendas para toda a gente da lista que escrevera a mando da mãe.
Para todos menos para a Madrinha, mas apenas porque estava muito cansada, mas a mãe tinha decidido implicar, e gritou, gritou, e ela disse que tinha sido apenas um esquecimento e ainda foi pior.
Ela não consegue tirar os olhos do papel e com ele regressa a voz da mãe, e ela a tentar não responder mas a mãe tinha a suprema arte de saber atingir nos pontos onde tudo doía mais, sobretudo desde que descobrira que ela se encontrava com o Carlos, “uma desavergonhada, é o que tu és, o que não diria a Madrinha se soubesse”, as palavras da mãe a rasgarem o fundo do seu coração, e para ver se a mãe se calava ela disse então uma tolice qualquer, “por que é que pendurou este quadro, mãe, é tão feio”, e de repente a mãe a apontar para o fim do corredor, “ se não gostas tens bom remédio, a porta é ali”
Quer deitar fora o papel mas não é capaz, as coisas que se guardam, meu Deus!, e por onde terá andado este papel durante estes anos todos, este papel que lhe traz a voz da mãe e depois a dela, “se é assim que quer”, ela abrindo a porta e saindo para a rua sem mais nada, mais nada a não ser aquela lista idiota cheia de nomes de pessoas para quem comprou prendas porque era tempo de natal e assim a mãe lhe tinha ordenado que fizesse.
Olha mais uma vez para o papel e só se lembra de o ter nas mãos e de não saber o que fazer, nem para onde ir — mas com a certeza absoluta de que, naquele natal, era ela que iria renascer. Noutra vida. Noutro lugar.
- Que papel é esse?
Estremeceu, não tinha dado pela entrada do marido na sala.
Entregou-lho e ele abriu os olhos de espanto:
- Tu guardaste isto?!
Ela encolheu os ombros.
- Se calhar... Nem me lembrava. Abri uma gaveta e lá estava, no meio de papelada velha…
- Caramba…Há quantos anos…Dá cá essa porcaria, que eu deito fora.
Ela hesitou em dar-lhe o papel, mas no fim entregou-lho, para que quereria ela aquilo, realmente.
- Diga lá, mãe, o que é isto? — a voz da filha a trazê-la à realidade.
Ela olha para o marido, e ouve-se, há quarenta anos, a murmurar:
- Posso ficar contigo?
A filha continua a olhar para ela.
- Isto — responde ela, finalmente, — é a prenda de Natal mais bonita que o teu pai alguma vez me deu.

in "ACTIVA" Dezembro 2008

FAMÍLIA É SEMPRE FAMÍLIA

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TINHA SIDO COMPLICADO arranjar data que conviesse a todos, mas finalmente tudo se resolvera - e os cinco casais de irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, pela primeira vez em 30 anos, iam ter férias em conjunto.
Era o sonho de uma vida inteira.
Áfricas, Brasis, emigrâncias tinham-nos afastado — e agora, finalmente reformados, queriam pôr a vida em dia, contar histórias, lembrar os que já tinham partido, recordar aventuras, rir em serões de janelas abertas sobre o mar, distribuir afectos e memórias.
Iam ser, pela primeira vez, uma família, daquelas felizes e despreocupadas, como nos cartazes de publicidade às companhias de seguros.
O irmão mais velho, o único a viver em Lisboa, é que tinha alugado a casa para o mês inteiro, e o reencontro foi uma alegria, pareciam miúdos de escola quando voltavam de férias e queriam contar tudo logo no primeiro intervalo.
Uma das cunhadas perguntou apenas se por acaso ali não haveria melgas, e o mais velho zangou-se, melgas?, mas ela pensava que estava no Pantanal ou quê? Não voltaram a tocar no assunto.
Ao fim do segundo dia ainda não tinham decidido quem é que fazia a comida, quem é que lavava a loiça, e como se dividiam as despesas.
“O Ricardo é um machista de primeira”, murmurou então uma das irmãs, “ nem para ir buscar uma cerveja ao frigorífico ele se levanta do sofá, palavra que não sei como a Carmo o aguenta!”
Mas ou o murmúrio não foi suficientemente murmurado, ou as paredes não eram suficientemente fortes, o resultado é que a Carmo saiu em defesa do marido, e que os das outras não eram melhores, que ela bem os via sentados à mesa enquanto todas andavam num virote a levar e trazer pratos e travessas da cozinha, ao que o dito Ricardo respondeu que já estava muito velho para mudar e, para ele, cozinha era lugar de mulherio, e fim de papo.
“Era o que faltava, que me mandassem calar na minha casa e na minha terra!”, berrou o mais velho, em jeito de anfitrião ofendido.”
“Mas quem é que mandou calar quem?”, disse a mais nova, meio conciliadora, e todos fizeram um esforço e acalmaram.
“Todos juntos, que bom!”, exclamou de novo a mais nova no dia seguinte, à mesa do pequeno almoço, “o nosso pai é que havia de gostar de nos ver!”
“O nosso pai?”, explodiu a irmã do meio, “ o nosso pai nunca gostou de nós! Só as vezes que ele me batia com aquele vime que escondia atrás da porta! Acho que ainda tenho as marcas!”
“A mim nunca me tocou!”
“Pudera, eras o queridinho, denunciavas toda a gente, ainda me lembro quando lhe foste dizer que eu tinha bebido a garrafa inteira de jeropiga, seu acusa-cristos!”
“Seu quê? Repete lá isso, repete a ver se tens coragem?”
Ela teve e repetiu e ele só não lhe foi à cara porque os outros o seguraram, “então, Zé, estamos aqui em família, tão felizes!”
Ao quarto dia houve um problema de contas de supermercado, “estás-me a acusar de meter dinheiro ao bolso, é?”, “ó Felícia mas quem é que está a dizer uma coisa dessas?”
Aguentaram cinco dias.
Fizeram as malas e cada casal foi à sua vida, prometendo todos mandar um belo cartão de Boas Festas pelo Natal.
Porque família é sempre família.

in "ACTIVA" Outubro 2008

ERRO DE CÁLCULO

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NO DIA EM QUE LAURA FEZ 60 ANOS, o marido prometeu-lhe dedicação a tempo inteiro se ela se reformasse.
Ela riu com aquela expressão tão burocrática, e ele voltou a afirmar-lhe que estava farto de a ver sair de casa de madrugada, e chegar muito tarde, farto de jantar sozinho diante da televisão, farto daquela vida que não era vida, mas que era a sua desde que atingira os 65 e deixara a empresa.
Os filhos estavam criados e já casados, ela tinha mais que tempo de serviço para ficar com a reforma por inteiro, para quê esperar?
Nesse ano, Laura deu uma grande festa.
Nunca tinha gostado de comemorar os anos – mas sempre tinha dito que, quando fizesse os 60, ia festejar mesmo a valer.
E festejou mesmo a valer.
Quase 200 pessoas, baile a preceito num palacete lisboeta, desses que se alugam para fazerem de conta que são jóias de família —quando já não há nem família nem jóias.
Convidou chefes e subordinados, ex-ministros e antigas criadas, amigos e apenas conhecidos, para mostrar como se dava bem com toda a gente, e não fazia distinção de classes.
Mas só gente para lá dos 60, numa espécie de hino de louvor à terceira idade.
De cada vez que Laura ia ao cemitério pôr flores na campa da mãe, recordava-se sempre do que ela tantas vezes lhe repetia:”cautela com os homens de meia idade! Perdem a cabeça por qualquer rabo de saias com idade para ser sua neta!”
Dançou-se até de madrugada.
A festa teve honras de várias páginas em todas as revistas, mais por causa dos ex-ministros do que propriamente pela anfitriã.
O marido tinha sido dos mais animados. Ele que, regra geral, nem era muito de danças, não tinha parado um segundo.
Cada vez que Laura olhava para ele, lá o via a rodopiar, em grande animação, sempre com Maria Teresa, uma velha amiga de liceu que ela, ainda estava para saber porquê, se lembrara de convidar.
Maria Teresa nem tinha sido das colegas mais chegadas, até porque nem andavam no mesmo ano e, nessa altura, quatro ou cinco anos a mais faziam passar Maria Teresa, sem apelo nem agravo, para o estado de adulta, quase velha.
Ao fundo da sala, a filha de Maria Teresa. Desengraçada e sem a garra da mãe. Laura nem se lembrava do nome dela, nunca a tinha visto, e, se ali estava, tinha sido apenas porque Maria Teresa lhe tinha pedido, “para depois não voltar sozinha para casa, percebes?”
De vez em quando, olhando o ar tão sério de todos os convidados, as barriguinhas proeminentes de alguns, Laura sorria e pensava nos avisos da mãe, enquanto olhava para o marido, dançando com Maria Teresa.
Maria Teresa, com mais 5 anos do que ela.
Maria Teresa, já oficialmente na terceira idade, com direito a desconto nos transportes, nos museus e nos cinemas.
Maria Teresa, velha.
Quando, algumas semanas depois, o marido lhe veio com a conversa de que estivera a pensar melhor e se calhar a reforma antecipada talvez não fosse grande ideia, habituada a sair cedo e entrar tarde todos os dias, como iria ela reagir a dias e dias sem horários nem trabalho aturado—ela não achou estranho, e até lhe deu razão.
Depois, de repente, ele começou a ser requisitado pela antiga empresa para a representar no estrangeiro, ele tinha sido um alto funcionário, por isso nada melhor do que ser ele escolhido, apesar de reformado.
“Por uma questão de prestígio”, dizia ele.
Até ao dia em que, ao folhear uma revista no cabeleireiro, Laura deu de caras com ele, há dois meses, no Baile das Flores, na Madeira, dançando com Maria Teresa.
Maria Teresa, que não tinha idade para ser neta dele.
Maria Teresa, com mais 5 anos do que ela.
Maria Teresa, velha.
O divórcio veio rápido, ainda bem que as coisas agora estavam tão facilitadas, e eles eram pessoas civilizadas.
A vida continuou como sempre.
Mas Laura nunca mais foi ao cemitério pôr flores na campa da mãe.

In “ACTIVA”, Agosto 2008

UM GRANDE HOMEM

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ABRIU O CAIXOTE e o papel de jornal começou a esfarelar-se entre os dedos. Logo ao de cima, o prato das papoilas, o primeiro que pintara. Para ele escolhe o lugar mais visível da parede da sala. E depois os outros todos. Há uma leve poeira à medida que os vai desembrulhando e pregando na parede.
Há 40 anos que sonha fazer isto, desde que, recém-casada, veio viver para Lisboa.
E tem de ser hoje, agora, enquanto espera pelo filho para o primeiro almoço de domingo sem ele.
Martela com cuidado, não quer fazer muito barulho por causa dos vizinhos, mas acaba por encher a parede. Finalmente todos os pratos que pintou estão no lugar onde sempre sonhou vê-los.
Olha para cada um deles e sente uma saudade imensa de si há quarenta anos, uma saudade do cheiro das tintas, dos pincéis, dos olhos seguindo o desenho.
Quando chegou ao casarão de Lisboa tratou de escolher um quarto para lá pôr todo o material, mas logo o marido lhe disse que nem pensasse, enquanto solteira podia divertir-se como quisesse, mas agora, mulher casada, o seu trabalho era a casa e os filhos quando viessem. E não queria palermices daquelas nas paredes, avisava já.
O marido era um homem importante. De vez em quando havia reuniões lá em casa, que se prolongavam pela madrugada fora, e a que ela, evidentemente, nunca assistia. Aparecia apenas para levar café, e para abrir a porta quando todos partiam, e via a deferência com que todos tratavam o marido. Um grande homem, o marido.
Viveu a revolução de Abril com alegria, tudo ia mudar, a liberdade tinha chegado, e ouve na rádio e na televisão, e lê nos jornais, como o marido era importante, como tinha sido um dos pilares da revolução, como tinha lutado pela democracia.
O país desdobrava-se em manifestações, mas ela continuava em casa, a voz do marido, “que é que tu lá ias fazer? Fica mas é a tratar das crianças, que as mulheres não se fizeram para a política.”
Um dia acompanhou-o numa viagem ao Brasil, a única em que ele a levou, porque iam outras mulheres de oficiais e podia parecer mal. Foi nessa viagem que comprou um vestido às ramagens verdes, amarelas e vermelhas.
O vestido que agora veste, feliz por não se ter deixado engordar, por ter o mesmo corpo de há vinte anos, quando ele lhe disse, à chegada a casa, “nem penses em vestir isso, já não tens idade para certas coisas.”
Entre as paredes da casa, os saias-e-casacos cinzentos, a comida servida a horas, foi criando o filho.
Às vezes um ou outro colega do marido ia lá jantar e dizia, “por que é que a D. Laura nunca aparece?”, e logo ele respondia por ela, “ a minha mulher tem uma casa e um filho para cuidar”, e ela sorria.
Envelheceu com os pratos embrulhados no caixote, e o vestido de ramagens ao fundo do guarda-fato.
E agora ele tinha morrido.
No enterro foi beijada e abraçada por gente que nunca tinha visto, os ramos e as palmas e as coroas nem couberam na igreja, e toda a gente a tentar confortá-la, que ao menos ficava a recordação de um homem excepcional, que tinha dedicado a vida inteira à luta pela democracia.
Ouve a campainha, e de repente a voz do filho, espantada, “ó mãe, que é que fez à parede? Quando é que comprou estes pratos todos?”
E ela encolhe os ombros e diz apenas que os tinha guardados há muito tempo.
Depois ele olha para o vestido, para as cores berrantes do vestido, e vai dizer qualquer coisa, mas acaba por não dizer, faz-lhe uma festa e murmura, “fez bem, mãe, fez muito bem em não pôr luto, é com alegria que temos de recordar o pai e, onde quer que ele esteja, tenho a certeza de que está muito feliz por vê-la assim!”
“Também tenho a certeza”, disse ela.
E sentaram-se à mesa.

in "ACTIVA" Julho 2008

MUDAR DE VIDA

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TINHA-LHE DITO que chegava às oito.
Ela teria preferido antes. Oito horas era a hora do jantar.
À uma almoçava-se; às oito jantava-se.
Quando entrara pela primeira vez naquela casa essa tinha sido uma das primeiras regras que aprendera a não quebrar.
Durante anos a sua vida tinha-se processado dentro de esquemas rigorosos, cronometrada ao segundo, dias certos para tudo, horas certas para tudo.
“Estou velho para mudanças”, tinha dito o marido antes de se casarem, para que ela não dissesse que não sabia o que a esperava.
A família tinha-a avisado: ” tudo menos casar com um viúvo!”.
Porque, explicava-lhe a mãe, “ um divorciado é diferente; se deixou a mulher é porque não tem boas lembranças dela, é porque ela lhe fez a vida negra e, com perdão da palavra, com uma cabra é muito fácil competir. Agora, um viúvo…”
Nessa altura a mãe respirava fundo, e depois explicava-lhe todas as desvantagens de casar com alguém que perdera a mulher, não interessava se há muito se há pouco tempo.
Para a mãe, que roubara descaradamente o marido a uma colega de escola sem nunca ter tido o mais leve vestígio de remorso, casar com um viúvo era coisa inaceitável.
Um viúvo era a missa todos os anos, a romagem ao cemitério, a recordação das coisas maravilhosas que tinham passado juntos, os lugares onde tinham estado, o perfume que ela usava, a maneira como passava as camisas, o tempero que punha no caldo verde.
Casar com um viúvo era casar com um homem que sofria de uma doença incurável: saudades da defunta.
E ninguém podia competir com uma morta, porque todos os mortos são perfeitos.
Ao princípio, achou que a mãe exagerava, mas acabou por lhe dar razão.
Nunca sentira como sua aquela casa velha, com um corredor enorme, quartos interiores, a luz a chegar apenas da janela da cozinha lá ao fundo.
Uma casa desconfortável, já vivida antes dela.
Como um vestido comprado em segunda mão e que lhe estivesse sempre largo.
E, pior do que tudo, o retrato da morta, com um sorriso levemente irónico, pendurado na parede do quarto, diante da cama.
Quando adormecia, a morta era o último rosto que levava nos olhos.
Quando acordava, era a primeira a anunciar-lhe o dia
Durante todos os anos que durara o seu casamento, partilhara sempre com a morta a intimidade do quarto.
Até ao dia em que o marido morreu.
Então toda a família lhe disse que tinha chegado a hora de ter finalmente uma casa sua.
--Uma casa feita à tua imagem – dissera a mãe.
Mas tinham-se passado vinte anos. Vinte anos da sua vida entre aquelas paredes, aquela loiça nos armários, aquela roupa nas arcas, aqueles retratos nas molduras.
O homem devia estar a bater à porta.
O homem que vinha combinar com ela o dia em que viria recolher os móveis, os bibelôs, as montanhas de revistas e jornais velhos, os trastes acumulados durante anos.
Olhou, impaciente, para o relógio.
Já passavam dez minutos das oito, o jantar ia ficar atrasado. Embora, para além dela, não houvesse mais ninguém à mesa. Mas rituais eram rituais.
De repente sentiu-se inquieta, como se um abismo a aguardasse e ela fosse cair nele, desamparada, e teve a certeza de não querer uma casa à sua imagem, de não saber movimentar-se dentro dela.
Como se tivesse engordado, e o vestido largo passasse a apertá-la a ponto de a sufocar.
Quando o homem chegou, pediu muita desculpa, disse que tinha havido um engano, que não queria desfazer-se de nada, que aquele tinha sido o seu mundo, e ninguém se pode separar do mundo onde lançou raízes.
Nessa noite teve a certeza de que o sorriso irónico da defunta se transformara numa sonora gargalhada.

in "ACTIVA" Junho 2008

O ANJO DE AGOSTO

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QUANDO A FOTOGRAFIA lhe veio parar às mãos, pelo meio de muitos papéis amarelecidos por muitos anos passados naquela gaveta, ela nem queria acreditar. Mas a dedicatória não oferecia dúvidas:
“À menina Geninha, no seu 10.º aniversário, envio-lhe os meus parabéns com desejos de que esta data tenha bis por muitos anos na companhia de seus Exº Padrinhos, são os desejos de Gualberto Santos (o do Saxofone)”
O estilo podia não ser muito literário, mas a letra era muito bonita, com as maiúsculas cheias de floreados, numa tinta a que os mais de 50 anos passados tinham dado um tom de azul muito claro.
Eugénia (ao tempo que não era “menina Geninha” para ninguém..) sorriu para aquele homem de meia idade , de risco ao meio, fato e gravata, de pé , as mãos agarrando um saxofone, que lhe pendia do pescoço.
E com uns olhos muito tristes.
Eugénia sempre se lembra dele com olhos tristes, tocando à noite, para animar um pouco os jantares daquele hotel das termas, onde os padrinhos passavam sempre o mês de Agosto .
Nunca se lembra de alguma vez o ter visto rir.
Nem sequer sorrir.
Exactamente como o Buster Keaton dos filmes da sua infância.
O Sr. Gualberto tocava saxofone. E o instrumento fazia de tal maneira parte de si próprio que, de cada vez que se apresentava a alguém, fosse adulto ou criança (e ele falava a uns e outros exactamente da mesma maneira), batia ligeiramente os calcanhares e murmurava:
“Gualberto Santos, o do saxofone”.
O Sr.Gualberto era o anjo da guarda das crianças naquele velho hotel das termas de Caldelas, onde as horas escorriam dolorosamente, sem nada para fazer. Eugénia ainda hoje se lembra: nem um baloiço, nem um escorrega, nada. Tudo naquele lugar era unicamente pensado para adultos muito velhos, a clientela que ali procurava remédio para todas as maleitas.
Mas o Sr.Gualberto inventava festas e jogos, sabia lengalengas e adivinhas, contava histórias como ninguém (sempre com aquele ar de sexta-feira santa...), punha os miúdos a cantar—e, de manhã à noite, andava sempre com uma multidão de catraios atrás dele.
Eugénia estremece, “meu Deus, seria que hoje isso poderia acontecer assim, com a cabeça das pessoas envenenada por tanta coisa que se lê nos jornais?” - mas afasta para bem longe esse pensamento para recordar apenas esses meses de Agosto da sua infância, com a sensação de eles nunca terem pertencido a nenhum tempo, a nenhum lugar, qualquer coisa que chegava quando Agosto chegava ,e acabava quando Agosto acabava.
O seu breve tempo de liberdade.
Depois era o regresso a casa, as zangas constantes, os castigos — e o anjo da guarda a ficar longe, muito longe, e sem poder fazer nada por ela.
Porque o seu poder exercia-se apenas naquele pequeno paraíso de Agosto, quando os padrinhos a largavam e ela podia, no breve espaço de trinta dias, ser feliz.
De repente recorda-se com grande nitidez do rosto e dos nomes das outras crianças, “Bé, Pedro, Tracy, Mitucha, Miqui, João Pedro “ que nunca mais viu, que se calhar já morreram, ou são avós, como ela.
E gostava de saber se a todas o Sr.Gualberto terá mandado uma fotografia no dia dos anos, e estupidamente espera que não, espera, mas espera mesmo, que há 50 anos ela tenha sido especial para ele.
Um dia destes há-de comprar uma moldura, a mais bonita que encontrar, para pôr a fotografia.
Como se se tratasse da fotografia do seu primeiro namorado.

in “ACTIVA”, Agosto 08

GENTE QUE ME SIRVA

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QUANDO ELA CHEGOU ao balcão do supermercado, éramos três à sua frente.
Aquele era um balcão de atendimento rápido, uma ou outra informação, a compra dos jornais, os sacos que ali se depositavam e se vinham depois buscar, e pouco mais.
Um balcão onde tudo se resolvia sem grandes demoras.
Ela sorriu, esperou alguns momentos (o tempo de a empregada fazer o troco de um jornal) e depois, em voz mansa, pediu se nós não nos importávamos de lhe ceder a vez. Tratava-se de uma emergência, dizia, de um caso complicado, ela nem gostava de pedir favores a ninguém, custava-lhe mesmo muito, mas ali tinha que ser, “as senhoras nem imaginam o que se pode passar com as pessoas, a vida dá cada volta!...”
Nós olhámos umas para as outras, e depois para a senhora, aconchegada no seu casacão de fazenda castanha com gola de pele, e que continuava a sorrir e a afirmar que se tratava mesmo de um caso de grande necessidade.
Que grande necessidade seria, isso é que nenhuma de nós conseguia descortinar, pelo menos assim à primeira vista, mas pronto, estávamos em maré de simpatia e boa vizinhança, lá concordámos e dissemos todas que sim, ela que avançasse primeiro.
Então ela dirigiu-se à empregada e, já em tom diferente daquele que usara connosco, disse:
- Preciso de alguém que venha fazer as compras comigo.
Devo dizer, antes de mais, que eu nem sonhava que houvesse esse serviço disponível nos supermercados (e ainda agora não tenho lá muito a certeza de que haja...) – mas pelo menos naquele havia.
A empregada não disse nada, olhou para a senhora também com ar de quem não percebia a urgência nem sequer a necessidade daquele pedido mas, certamente lembrada de que o cliente tem sempre razão, lá ligou para um telefone interno, assegurando depois que uma colega viria dentro de momentos.
- Que não demore muito…--murmurou a senhora. - Estou com uma certa pressa.
- Vem já – garantiu a empregada
A senhora suspirou fundo e murmurou que agora já ninguém trabalhava como devia ser, era tudo um bando de incompetentes e, para além disso, era tudo uma malandragem que até fazia impressão.
A empregada fez que não ouviu e foi atender outros clientes.
A senhora não estaria na sua primeira juventude, pois não, mas também ninguém ousaria chamar-lhe velha. Bem vestida, bem penteada, bem maquilhada, pernas, braços e mãos nos seus devidos lugares, a ver e ouvir normalmente, como ali ficara provado—por mais voltas que eu desse à minha cabeça não conseguia entender por que motivo precisava ela de acompanhante para fazer as compras.
Ela deve ter entendido o nosso silêncio e o nosso olhar meio espantado. Endireitou-se melhor e, sem sorrisos nem voz mansa, disse:
“Aqui onde me vêem, fiquem a saber que vivi sempre numa casa onde havia cinco criadas. Cin-co cri-a-das! Nunca mexi um dedo para fazer fosse o que fosse. E não era depois de velha que o ia fazer. Quando vieram estes tempos…”
E aqui hesitou, faltava-lhe um adjectivo adequado, e nós a olharmos para ela sem sabermos o que dizer, e ela a olhar para nós e com o discurso engasgado, até que, de repente, lhe volta a veia oratória e a diatribe é retomada exactamente no mesmo ponto em que a largara:
“Quando vieram estas modernices, eu disse cá para mim, há-de sempre haver gente que me sirva.”
Respirou fundo e repetiu:
”Sempre!”
Nesse momento chegou a empregada destacada para o serviço, e desapareceram ambas pelos corredores dos legumes e da fruta.
E eu fiquei ali especada junto do balcão, com uma estúpida sensação de ter assistido a um filme muito antigo, e que não acabava nada bem.

In”ACTIVA”, Março 2008

O VESTIDO DE NOIVA

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PASSOU
a mão pelo tecido.
Já o podia imaginar sobre a sua pele, o vestido a cair suavemente sobre o corpo, e as mangas a escorregarem pelos braços, a nascerem de um grande decote, como ela viu uma vez num filme.
Era um filme passado em tempos muito antigos, e a noiva era rainha, e esperava a chegada do cavaleiro que a levaria ao altar.
Já quase nem se lembra da história, de resto ela esquece sempre rapidamente a história dos filmes que vê. Mas às vezes há pequenos pormenores que a toda a gente escapam e que ela guarda para sempre. Uma frase desgarrada. Um gesto. Uma paisagem fugaz. Um vestido de noiva. Branco, com a cauda a arrastar, e duas mangas compridas a nascerem de um grande decote
Desde esse dia sempre imaginou que o seu vestido de noiva seria assim.
Estende o tecido sobre a mesa, e a cliente murmura:
-É igualzinho ao tecido do vestido de noiva da minha filha. Ficam lindas as noivas com vestidos destes.
A senhora fala como se não estivesse mais ninguém na loja.
Ela está habituada. Habituada a que as clientes nem olhem para ela, que está ali apenas para as servir. Não tarda muito, será substituída por um robot, a tecnologia pode tudo, e é muito mais eficaz, e não faz reivindicações, nem fica grávida, nem pede aumento de ordenado.
-A minha filha casou-se no Rio de Janeiro - continua a cliente, e ela a pensar que para ela bastava-lhe a igreja da sua aldeia, com uma santa que tem fama de proteger quem vem de fora para ali se casar.
- Foi lindo…A cauda do vestido a arrastar por aquela escadaria imensa…
A igreja da aldeia dela não tem escadaria, mas ela, desde que tenha o Luís a seu lado, que lhe importa a escadaria.
- Na Igreja da Penha, já ouviu falar? - continua a senhora.
Ela diz que não, e a cliente admira-se.
- Não? Mas é tão conhecida…É aquela que fica no alto de um monte e tem uma grande escadaria. Há quem diga que são 382 degraus. Eu não os contei, claro, mas custaram-me tanto a subir que eu até acho que devem ser muito mais.
Faz uma pausa e insiste:
- Nunca ouviu falar?
Ela quer ser simpática, mas a verdade é que nunca ouviu.
Então a cliente vai contando a história toda, até parece daqueles folhetos das agências de viagem, ou então aqueles que às vezes aparecem nas caixas de correio.
E ela tem pena de não conhecer, ela até vê muitas telenovelas mas em nenhuma se lembra dessa tal igreja, ou estava distraída ou então adormeceu, às vezes chega a casa tão cansada que nem aguenta chegar ao primeiro intervalo.
A cliente vai continuando as explicações:
- E então agora ainda é mais conhecida, porque o vencedor de um dos Big Brothers do Brasil foi lá pagar a promessa que fez à Senhora da Penha antes de entrar no concurso.
- Se ele ganhou, então é porque a santa faz mesmo milagres…--diz ela,para ser simpática.
Mas a cliente fica subitamente muito séria:
- O homem ganhou o concurso, é verdade, mas a minha filha, um ano depois do casamento já estava divorciada.
Ela vai responder que os santos, se calhar, nem sempre estão atentos a tudo, mas a cliente já deu meia volta, e largou a seda sobre o balcão.
Ela suspira e arruma tudo com cautela, e volta a pensar que há-de casar um dia com um vestido daquele tecido. Na igreja da sua aldeia. Sem escadaria - mas com uma santa que olha por todos.

In “ACTIVA”, Fevereiro 08

HISTÓRIA DE AMOR

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OLHO PARA TI, nem sei bem porquê, és uma mulher de meia idade igual a todas que enchem este centro comercial, mas entras no café, escolhes uma mesa ao pé de mim, também não há grande alternativa, as outras estão todas ocupadas, sacos e mais sacos a encherem cadeiras como sempre acontece nestes lugares.

Bebes rapidamente o garoto que pediste, olhas para o relógio, e vais já a levantar-te quando, de repente, uma amiga te aparece pela frente, o teu olhar espantado quando ela te agarra o braço, te enche de beijos, te obriga a sentar de novo.

Tu ainda murmuras “ia já a sair” mas ela nem ouve, ao tempo que não se encontravam, exclama, e tu olhas discretamente para o relógio, “estava só a descansar uns minutos, a minha vida é uma correria constante”, dizes, mas ela volta a não ouvir, ou então ouve mas as tuas correrias não a interessam por aí além, o que ela quer mesmo é saber que é feito de uma data de gente, e pergunta por um rol infindável de nomes, que lhes aconteceu?, estão bem?, e fulano ainda é vivo? e os teus filhos ainda estão casados?, sim porque isto, minha filha, é um casa descasa que vai por aí que a gente nunca sabe, eu já nem pergunto pelos maridos ou mulheres quando encontro alguém, digo sempre “tudo bem?”, e pronto!

Olhas desesperadamente para a porta de saída do centro, mas nem isso ela percebe, vai embalada na conversa, caramba! está mesmo contente por te ter encontrado, e tu também não lhe queres estragar a alegria.

Com algum esforço (a voz dela é muito aguda, cansa qualquer um…) vais dando notícias de todos, a que ela vai sempre contrapondo exclamações de surpresa, ah! vê lá tu !, quem diria!.

E de repente pergunta pelo teu marido, se continua a viajar muito ou se já se reformou, e tu ficas calada por alguns instantes, olhando ainda com mais insistência para a porta, para o relógio, para qualquer coisa que venha em teu auxílio, e murmuras:

- Está numa clínica. Tem Allzheimer.

Ela fica a olhar para ti, subitamente esgotadas todas as palavras, como se de repente te quisesse ver muito longe dali, como se a dor de cada sílaba fosse doença contagiosa, e tu explicas que todos os dias o vais ver, que todos os dias estás com ele todo o tempo possível, mas que ele já nem a ti conhece,

olha-te como se fosses uma estranha, e grita muito, e tu tens muita pena de não o poderes ter em casa, levá-lo para aquela clínica foi o maior desgosto da tua vida.

Dizes tudo com ar cansado, mas muito doce, e acrescentas que lhe tinhas prometido chegar hoje às quatro horas, com os chocolates de que ele gosta muito, e já vais chegar atrasada.

Ela olha para ti e murmura, um pouco para te consolar, um pouco para preencher um silêncio incómodo:

- Deixa lá, se dizes que ele já nem te conhece, também não vai saber que chegas atrasada…

E é então que tu a olhas bem nos olhos, e te levantas, decidida, da cadeira, e agarras no saco de plástico onde levas os minúsculos quadrados de chocolate preto de que ele gosta tanto, e mudas a tua voz doce para uma voz estranhamente firme, e lhe respondes:

- Não sabe ele, mas sei eu.

E sais quase a correr do centro comercial.

E eu fico a olhar para o teu rasto, com muita pena de não te conhecer e de não te poder dizer que esta foi, de certeza, uma das histórias de amor mais bonitas que me lembro de alguma vez ter ouvido.

In “ACTIVA”, Janeiro 08